sexta-feira, 14 de junho de 2024

Comadre Júlia por Edymar von Randow

Há algum tempo, conversando por whatsapp com a tia Edymar (arquiteta e ex-esposa do meu tio Tato, tb arquiteto), tive o privilégio de receber um texto de suas lembranças sobre a fazenda Riacho do Campo (da minha família materna), falando sobre a comadre Júlia e a família dela que durante muitos anos acompanharam meus avós e tios na lida da fazenda. Fiquei emocionada em constatar como a fazenda e as pessoas que ali trabalhavam nos marcaram a todos de alguma forma e achei importante deixar aqui essas recordações como parte da nossa história e registro para as próximas gerações da família. Principalmente em se tratando da autoria de alguém como a tia Edymar, que além de projetos e reformas, deixou plantada na fazenda a raiz de seu filho, o Fabinho, que amava a Riacho do Campo e a quem nós amávamos muito. Como forma que ilustrar o ambiente retratado no texto, posto também a lindíssima pintura da prestigiada artista mineira Eliana Martins, cunhada do tio Zizico e da tia Nora, inspirada na antiga cozinha da fazenda.

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COMADRE JÚLIA - por Edymar von Randow  

Estava aqui lembrando demais da Comadre Júlia. 

Íamos muito à então Fazenda Riacho do Campo que foi se transformando na Agropecuária de hoje. 

Muito trabalho pela frente desde gerenciar projetos, financiamentos, execuções...

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Ainda tudo no começo, ficávamos na casa principal no seu formato original. Na cozinha, a mesa grande dominava. Encostados nas paredes, os bancos com réguas de madeira, pintados em azul. 

Encostado na parede que dava para o quintal (caixa dágua, banheiro) ficava o grande fogão à lenha alimentado por toras. Havia sempre alguma coisa cozinhando, geralmente feijão ou água fervendo. 

Nos fundos da cozinha, havia dois cômodos: despensa e um quarto onde dormia Comadre Júlia que era a primeira a acordar e a última a se recolher.

Acompanhávamos todos às excursões aos retiros, às viagens, mas alguns dias eu e minhas crianças, ainda pequenas, entre 1 e 5 anos, ficávamos na Sede e então, na cozinha sentada ao lado da Comadre Júlia, escutava atentamente suas histórias, e que histórias! 

Na verdade, suas histórias eram relatos de toda uma vida vivida na Fazenda, totalmente ligada à família Couto Cardoso de Oliveira. 

Interessante, a narrativa que começava com: “naquela quadra”. 

A Comadre Júlia chegou à Fazenda ainda criança. Foi acolhida, ela e a família, pela D. Olympia. Parece que chegaram famintos, após dias de caminhada, só com a roupa do corpo. Comadre Júlia ficou para trás para fazer serviços gerais, como um membro da família enquanto os pais prosseguiam em busca de oportunidades para sobreviver. 

Eu a conheci idosa, viúva, mãe da Conceição (esposa do Arceu então gerente operacional da recém criada Agropecuária Riacho do Campo). Nesta época, Comadre Júlia se locomovia com dificuldade, curvada, devido à lesão na coluna originada por uma queda.

Algumas tarefas como descascar legumes, catar feijão, fazia sentada e então contava as histórias que na verdade eram da sua vida inteiramente ligada à família que a acolheu. 

Assim, de quadra em quadra, ouvi a história da morte prematura do primeiro filho da D. Olympia, pisoteado por um cavalo. 

Emocionante mesmo foi seu relato de como D. Olympia chegou com a família, se abrigando inicialmente na única construção existente na época (paiol) fugindo da gripe espanhola (?). Como não havia pontes nem estradas, a viagem era interrompida até esperar as águas dos cursos d’água baixarem para dar passagem aos carros de boi que usavam trilhas abertas no mato do cerrado.

Algumas histórias esqueci, mas guardo bem os cenários. Lá fora, no quintal, D. Maria, lavadeira, mexia uma tachada de doce de leite, assentada sobre uma fornalha tipo monte de cupim. Eu me lembro também da enorme caixa no corredor do banheiro para guardar roupa suja, como também das caixas para guardar mantimentos. 

Conheci a Serraria com a enorme roda d’água para gerar energia. 

Com a morte destas pessoas que testemunharam a história da Fazenda e o desaparecimento de objetos como o moedor de café, a batedeira de fazer manteiga, o enorme tacho de cobre, a enorme mesa da cozinha, eu me pergunto: o que restou desta história? 

Nas paredes, retratos, nas áreas novas, uma decoração com latões de leite pintados, móveis imitando relíquias. 

Eu tive a sorte de conhecer este lado real. 

Adooooro ver tudo que é preservado e respeitado para que outros, como eu, possam conhecer esta história tão linda, ainda que em quadros ou “quadras”.

Pintura de Eliana Martins 


domingo, 2 de junho de 2024

O Renoir de minha tia

Entre os muitos quadros lindos da casa da minha mãe, escolhi o quadro das Meninas no Campo, de Renoir, como lembrança da casa dela para a minha casa em Israel.

A pintura perfeita é de minha tia Therezinha Couto, cuja coleção especial encontra-se em exposição permanente na Prefeitura de Paracatu, Minas. Mamãe é de família de artistas, muitos pintam, desenham e bordam. Este quadro, minha tia fez para a irmã dela, tia Jacira. Quando tia Jacira se encantou precocemente e os filhos tiveram que fechar a casa dela, eles deram o quadro para a mamãe, ficando sempre no centro da sala e de nossa convivência diária. 

Desde pequena, eu imaginava que aquelas meninas eram eu e minha prima Andréa, já que o quadro era da casa dela. É uma pintura incrível, pois, apesar de ser uma cena no campo, os tons que predominam são de azul, até mesmo na árvore, e isso dá um toque menos realístico e mais artístico. O quadro se encaixou perfeitamente na minha casa, como se sempre estivesse ali... Mas a história mais fantástica e que vou contar, é outra... 

Meu irmão foi comigo ao apartamento da mamãe, que ainda se mantinha fechado, para eu escolher o que quisesse levar para mim... Escolhi este quadro. De lá fomos, meu irmão e eu, levá-lo para um antigo moldurista da rua Montevideo esquina com Grão Mogol para desemoldurar e embalar em tubo rígido para viagem. 

No embarque de volta a Israel, havia também livros que estavam na mamãe e outras bugigangas, muita coisa para transportar, e optamos, Alon e eu - meu caçula que viajava comigo - por carregar o tubo do quadro na mão. E assim, o quadro voou de Belo Horizonte para São Paulo, Paris e chegou bem em Tel Aviv. 

Meu marido nos buscou no aeroporto e chegamos em casa com aquela montoeira de bagagem. No dia seguinte, ao desmontar as malas, percebi que o tubo não estava em casa. Não me preocupei, pois me lembrava de, no carro, ter pedido ao Alon para colocá-lo na frente e não no bagageiro. Pensei, amanhã eu busco... Era fim de semana e não saímos de casa. No terceiro dia, desci para buscá-lo, mas o tubo não estava no carro...  

Comecei a duvidar de mim mesma, será que havia ficado no avião? Perguntei ao Alon, ele confirmou que estava no carro. Nova busca e nada. Já havia se passado uns quatro dias... Achei que o havia perdido no aeroporto, talvez, ao carregar a bagagem no carro, tivesse caído... Eu estava muito chateada, repassando os passos para entender como o havia perdido, já que Alon e eu viemos namorando o quadro pelo caminho, com todo o cuidado possível... Era algo caro para nós.

Estava inconformada, inconsolável com a perda daquela preciosa herança... Então, na manhã seguinte, indo para o trabalho, e descendo com o lixo subdivido em partes recicláveis, mais a bolsa..., na hora de jogar o lixo seco (ainda bem que era o seco 🙏), a chave do carro caiu dentro da lixeira e foi bater bem lá no fundo! A lixeira do prédio é alta, chega quase ao meu peito, teria que deitá-la no chão e começar a tirar as tralhas de cima para tentar chegar à chave, ao fundo. A lixeira estava cheia, tinha que retirar primeiro o que estava por cima... 

No que tirei as primeiras tralhas, apareceu mais embaixo o meu tubo ainda lacrado, intacto! Ao descer a bagagem na garagem, deve ter caído e rolado para próximo à lixeira, e algum vizinho jogou-o no lixo! Imagina!...

Se não fosse um objeto pequeno como uma chave, que escorregasse até bem embaixo, eu não precisaria ter tirado tudo e não teria chegado ao tubo... Só mesmo a chave me faria virar o lixo! Como disse meu filho, foi "hashgahá pratit", como se diz em hebraico; em português, "a providência Divina"! Como se Deus intervisse ali em ação individual para que o quadro chegasse ao seu destino! 🙏

Falei para as minhas netinhas Mischa e Sara que são elas as meninas no quadro... Agora é fazer uma foto das duas em piquenique no campo - e ver a vida imitar a arte...

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Raquel Teles Yehezkel 

Israel 2 de junho 2024

As meninas no campo, de Renoir, por Therezinha Couto, óleo sobre tela, 90x70

A pintora Therezinha Couto, de família de Bom Despacho e Luz, 
casou-se em Patos de Minas com José Corrêa Loureiro 

O quadro em Israel - no tempo das minhas netas crianças, em 2024

O quadro na mamãe com a minha família reunida - no tempo dos meus filhos crianças: meus pais (Maria e Emídio Teles), meus sogros (Nadra e Meir Yehezkel) e os filhos Elias, Ariel e Alon em 1999

Parte da nossa família reunida na casa da tia Jacira e tio Manoel Bernardes, com o quadro ao fundo, em 1968 - no meu tempo e dos meus primos crianças.