sexta-feira, 14 de junho de 2024

Comadre Júlia por Edymar von Randow

Há algum tempo, conversando por whatsapp com a tia Edymar (arquiteta e ex-esposa do meu tio Tato, tb arquiteto), tive o privilégio de receber um texto de suas lembranças sobre a fazenda Riacho do Campo (da minha família materna), falando sobre a comadre Júlia e a família dela que durante muitos anos acompanharam meus avós e tios na lida da fazenda. Fiquei emocionada em constatar como a fazenda e as pessoas que ali trabalhavam nos marcaram a todos de alguma forma e achei importante deixar aqui essas recordações como parte da nossa história e registro para as próximas gerações da família. Principalmente em se tratando da autoria de alguém como a tia Edymar, que além de projetos e reformas, deixou plantada na fazenda a raiz de seu filho, o Fabinho, que amava a Riacho do Campo e a quem nós amávamos muito. Como forma que ilustrar o ambiente retratado no texto, posto também a lindíssima pintura da prestigiada artista mineira Eliana Martins, cunhada do tio Zizico e da tia Nora, inspirada na antiga cozinha da fazenda.

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COMADRE JÚLIA - por Edymar von Randow  

Estava aqui lembrando demais da Comadre Júlia. 

Íamos muito à então Fazenda Riacho do Campo que foi se transformando na Agropecuária de hoje. 

Muito trabalho pela frente desde gerenciar projetos, financiamentos, execuções...

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Ainda tudo no começo, ficávamos na casa principal no seu formato original. Na cozinha, a mesa grande dominava. Encostados nas paredes, os bancos com réguas de madeira, pintados em azul. 

Encostado na parede que dava para o quintal (caixa dágua, banheiro) ficava o grande fogão à lenha alimentado por toras. Havia sempre alguma coisa cozinhando, geralmente feijão ou água fervendo. 

Nos fundos da cozinha, havia dois cômodos: despensa e um quarto onde dormia Comadre Júlia que era a primeira a acordar e a última a se recolher.

Acompanhávamos todos às excursões aos retiros, às viagens, mas alguns dias eu e minhas crianças, ainda pequenas, entre 1 e 5 anos, ficávamos na Sede e então, na cozinha sentada ao lado da Comadre Júlia, escutava atentamente suas histórias, e que histórias! 

Na verdade, suas histórias eram relatos de toda uma vida vivida na Fazenda, totalmente ligada à família Couto Cardoso de Oliveira. 

Interessante, a narrativa que começava com: “naquela quadra”. 

A Comadre Júlia chegou à Fazenda ainda criança. Foi acolhida, ela e a família, pela D. Olympia. Parece que chegaram famintos, após dias de caminhada, só com a roupa do corpo. Comadre Júlia ficou para trás para fazer serviços gerais, como um membro da família enquanto os pais prosseguiam em busca de oportunidades para sobreviver. 

Eu a conheci idosa, viúva, mãe da Conceição (esposa do Arceu então gerente operacional da recém criada Agropecuária Riacho do Campo). Nesta época, Comadre Júlia se locomovia com dificuldade, curvada, devido à lesão na coluna originada por uma queda.

Algumas tarefas como descascar legumes, catar feijão, fazia sentada e então contava as histórias que na verdade eram da sua vida inteiramente ligada à família que a acolheu. 

Assim, de quadra em quadra, ouvi a história da morte prematura do primeiro filho da D. Olympia, pisoteado por um cavalo. 

Emocionante mesmo foi seu relato de como D. Olympia chegou com a família, se abrigando inicialmente na única construção existente na época (paiol) fugindo da gripe espanhola (?). Como não havia pontes nem estradas, a viagem era interrompida até esperar as águas dos cursos d’água baixarem para dar passagem aos carros de boi que usavam trilhas abertas no mato do cerrado.

Algumas histórias esqueci, mas guardo bem os cenários. Lá fora, no quintal, D. Maria, lavadeira, mexia uma tachada de doce de leite, assentada sobre uma fornalha tipo monte de cupim. Eu me lembro também da enorme caixa no corredor do banheiro para guardar roupa suja, como também das caixas para guardar mantimentos. 

Conheci a Serraria com a enorme roda d’água para gerar energia. 

Com a morte destas pessoas que testemunharam a história da Fazenda e o desaparecimento de objetos como o moedor de café, a batedeira de fazer manteiga, o enorme tacho de cobre, a enorme mesa da cozinha, eu me pergunto: o que restou desta história? 

Nas paredes, retratos, nas áreas novas, uma decoração com latões de leite pintados, móveis imitando relíquias. 

Eu tive a sorte de conhecer este lado real. 

Adooooro ver tudo que é preservado e respeitado para que outros, como eu, possam conhecer esta história tão linda, ainda que em quadros ou “quadras”.

Pintura de Eliana Martins 


domingo, 2 de junho de 2024

O Renoir de minha tia

Entre os muitos quadros lindos da casa da minha mãe, escolhi o quadro das Meninas no Campo, de Renoir, como lembrança da casa dela para a minha casa em Israel.

A pintura perfeita é de minha tia Therezinha Couto, cuja coleção especial encontra-se em exposição permanente na Prefeitura de Paracatu, Minas. Mamãe é de família de artistas, muitos pintam, desenham e bordam. Este quadro, minha tia fez para a irmã dela, tia Jacira. Quando tia Jacira se encantou precocemente e os filhos tiveram que fechar a casa dela, eles deram o quadro para a mamãe, ficando sempre no centro da sala e de nossa convivência diária. 

Desde pequena, eu imaginava que aquelas meninas eram eu e minha prima Andréa, já que o quadro era da casa dela. É uma pintura incrível, pois, apesar de ser uma cena no campo, os tons que predominam são de azul, até mesmo na árvore, e isso dá um toque menos realístico e mais artístico. O quadro se encaixou perfeitamente na minha casa, como se sempre estivesse ali... Mas a história mais fantástica e que vou contar, é outra... 

Meu irmão foi comigo ao apartamento da mamãe, que ainda se mantinha fechado, para eu escolher o que quisesse levar para mim... Escolhi este quadro. De lá fomos, meu irmão e eu, levá-lo para um antigo moldurista da rua Montevideo esquina com Grão Mogol para desemoldurar e embalar em tubo rígido para viagem. 

No embarque de volta a Israel, havia também livros que estavam na mamãe e outras bugigangas, muita coisa para transportar, e optamos, Alon e eu - meu caçula que viajava comigo - por carregar o tubo do quadro na mão. E assim, o quadro voou de Belo Horizonte para São Paulo, Paris e chegou bem em Tel Aviv. 

Meu marido nos buscou no aeroporto e chegamos em casa com aquela montoeira de bagagem. No dia seguinte, ao desmontar as malas, percebi que o tubo não estava em casa. Não me preocupei, pois me lembrava de, no carro, ter pedido ao Alon para colocá-lo na frente e não no bagageiro. Pensei, amanhã eu busco... Era fim de semana e não saímos de casa. No terceiro dia, desci para buscá-lo, mas o tubo não estava no carro...  

Comecei a duvidar de mim mesma, será que havia ficado no avião? Perguntei ao Alon, ele confirmou que estava no carro. Nova busca e nada. Já havia se passado uns quatro dias... Achei que o havia perdido no aeroporto, talvez, ao carregar a bagagem no carro, tivesse caído... Eu estava muito chateada, repassando os passos para entender como o havia perdido, já que Alon e eu viemos namorando o quadro pelo caminho, com todo o cuidado possível... Era algo caro para nós.

Estava inconformada, inconsolável com a perda daquela preciosa herança... Então, na manhã seguinte, indo para o trabalho, e descendo com o lixo subdivido em partes recicláveis, mais a bolsa..., na hora de jogar o lixo seco (ainda bem que era o seco 🙏), a chave do carro caiu dentro da lixeira e foi bater bem lá no fundo! A lixeira do prédio é alta, chega quase ao meu peito, teria que deitá-la no chão e começar a tirar as tralhas de cima para tentar chegar à chave, ao fundo. A lixeira estava cheia, tinha que retirar primeiro o que estava por cima... 

No que tirei as primeiras tralhas, apareceu mais embaixo o meu tubo ainda lacrado, intacto! Ao descer a bagagem na garagem, deve ter caído e rolado para próximo à lixeira, e algum vizinho jogou-o no lixo! Imagina!...

Se não fosse um objeto pequeno como uma chave, que escorregasse até bem embaixo, eu não precisaria ter tirado tudo e não teria chegado ao tubo... Só mesmo a chave me faria virar o lixo! Como disse meu filho, foi "hashgahá pratit", como se diz em hebraico; em português, "a providência Divina"! Como se Deus intervisse ali em ação individual para que o quadro chegasse ao seu destino! 🙏

Falei para as minhas netinhas Mischa e Sara que são elas as meninas no quadro... Agora é fazer uma foto das duas em piquenique no campo - e ver a vida imitar a arte...

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Raquel Teles Yehezkel 

Israel 2 de junho 2024

As meninas no campo, de Renoir, por Therezinha Couto, óleo sobre tela, 90x70

A pintora Therezinha Couto, de família de Bom Despacho e Luz, 
casou-se em Patos de Minas com José Corrêa Loureiro 

O quadro em Israel - no tempo das minhas netas crianças, em 2024

O quadro na mamãe com a minha família reunida - no tempo dos meus filhos crianças: meus pais (Maria e Emídio Teles), meus sogros (Nadra e Meir Yehezkel) e os filhos Elias, Ariel e Alon em 1999

Parte da nossa família reunida na casa da tia Jacira e tio Manoel Bernardes, com o quadro ao fundo, em 1968 - no meu tempo e dos meus primos crianças. 





terça-feira, 28 de maio de 2024

Michel Nisenbaum, me aguarde para uma xícara de café no Céu

Não conhecia Michel Nisenbaum antes de 7 de Outubro. Mas desde que tomei conhecimento de seu desaparecimento me engajei, como outras centenas de pessoas, na campanha para o seu retorno e na divulgação de seu nome para que não fosse esquecido entre a longa lista de sequestrados pelo Hamas naquele dia nefasto. 

Conhecendo pouco a pouco sobre Michel, passei a admirá-lo cada vez mais e desejava muito poder um dia conhecê-lo pessoalmente. Mas com a chegada do anúncio do resgate de seu corpo de Gaza, no dia 24 de maio, e de que teria sido assassinado em 7 de Outubro, chegou também o fim da esperança e o início de luto para seus familiares e amigos que o amavam muito. Quanto mais ia ouvindo ao longo dos meses comentários de como Michel era um filho, pai, avô, irmão, tio e amigo dedicado, mais o admirava. Tanto era dedicado que encontrou seu fim enquanto tentava chegar à base militar de Reim para buscar a neta de 4 anos, que estava com seu genro, um oficial do exército. Há depoimentos de que ele salvou a vida de jovens que fugiam do Festival Nova de música, quando se encontrava a caminho de Reim, antes de ter sido morto e seu corpo levado refém para Gaza. 

Durante esses longos meses que se passaram, acompanhei o trabalho incansável de seus familiares e amigos em manter o nome de Michel em destaque para que fosse resgatado. Neste período, foram organizados encontros para contar histórias sobre ele: "Mi panui le café? / Quem está livre para um café?", era a pergunta que ele fazia aos amigos e que intitulou a campanha. Cafeterias do sul do país organizaram uma campanha em seu nome, com cartazes, copos, chaveiros, com escritos como: "Michel, mechakim le kos cafe itecha / Michel, te esperamos para um café com você". Seus familiares deram entrevistas no rádio e correram mundo falando sobre ele e pedindo o auxílio de outros países para resgatá-lo. Os amigos organizaram uma caminhada em seu nome ao longo do rio Yarkon, já que Michel era guia de turismo, ligado especialmente a passeios na natureza. 

Nesse tempo, aprendi que a mãe de Michel, uma mulher bonita, forte e corajosa, se chama Sulmira e que tem 86 anos; que a irmã se chama Mary, que veio antes deles para Israel, incentivando a vinda da mãe e do irmão então aos 13 anos; que Mary tem entre seus filhos a Ayala, que conheci engajada no resgate do tio; que as filhas de Michel são Chen e Michal, que amam o pai imensuravelmente e lhe deram 6 netos; que nesse tempo nasceu uma nova netinha que ele não chegou a pegar nos braços - a sexta - e há mais um/a a caminho!, sinal de esperança no futuro e de continuidade da família que ele e a mãe de suas filhas plantaram em Israel; que Michel deixou muitos amigos, pois era ativo em serviços comunitários, servindo no Maguem David e na guarda de fronteira. 

Michel Nisenbaum foi conduzido ao descanso eterno em 26 de maio, por seus familiares, seus muitos amigos e uma multidão de anônimos, assim como eu e muitos outros brasileiros e israelenses, que foram lhe prestar as últimas homenagens e honrar sua vida e sua memória. Que fique a esperança, fruto das boas ações de Michel Nisenbaum neste mundo.  

Como uma pequena contribuição para a preservação de sua memória, deixo assim um registro da minha despedida ao nosso conterrâneo brasileiro-israelense, em nome de milhares de brasileiros anônimos, daqui e do Brasil, que como eu se engajaram, torceram e rezaram pela volta de Michel: Que o nome de Michel Nisenbaum seja benção e luz sobre Israel, hoje e sempre. 

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Raquel Teles Yehezkel 

Israel 27/5/2024












quarta-feira, 1 de maio de 2024

Ayrton Senna Derech haShamaym

Só quem vibrou, 

torceu, 

esperou, 

rezou,

xingou,

chorou,

comemorou,

se emocionou,

amou,

acompanhou,

treinos, largadas, pit-stops, saídas, acidentes, defeitos nos carros, ultrapassagens, linhas de chegadas, bandeiradas, pódiuns, banhos de lavar a alma dos brasileiros com champanhes...

Só quem viveu

a Fórmula 1,

conheceu campeões, 

oponentes combativos 

do naipe de Alain Prost, 

Nigel Mansell, 

Michael Schumacher,

e ouviu as narrações emocionadas de Galvão Bueno,

pode entender o que sentimos

há exatos 30 anos 

na Tamburello, 

em Ímola, 

quando Senna voou 

a caminho do Céu

num fim de semana em que absolutamente tudo deu errado...

E a Fórmula continuou a correr...

Apesar de tudo... 

apesar de nosso Ayrton,

nosso atleta mais amado...

O mundo de queixo caído...


Foi ali, na Tamburello, 

que eu e todo o Brasil 

nos enviuvamos naquele dia

desse gênio de coração generoso na vida, 

e implacável na pista...

Nesse dia, eu estava em casa, em Ramat Hasharon, com meu marido, dois filhos pequenos e um casal de amigos assistindo tudo aquilo ao vivo... 

Em Israel, domingo é um dia comum (primeiro de maio também), e eu tinha uma prova na faculdade... Claro, não tive condições de ir... Passei uns três dias em estado de choque, em frente à televisão, acompanhando e gravando tudo que eu via nos canais europeus, que comentavam estarrecidos o acidente. 

Em 1994 ainda não havia tv a cabo no Brasil, mas em Israel já tínhamos... Assim, eu ia gravando trechos sobre Ayrton direto das TVs italiana, espanhola, francesa, alemã, inglesa... 

Assisti ao vivo e gravei todo o cortejo e enterro em São Paulo, com a presença de todos os pilotos da Fórmula 1, com imagens de helicóptero da Globo, emitidas para o mundo todo. Eu assistia via CNN, narrado por comentaristas ingleses, especialistas em Fórmula 1... Afinal, Senna havia acabado de ser contratado pela Williams... 

O mundo embasbacado com o amor que os brasileiros dedicavam a ele... 

Nessa fita escrevi: 

Ayrton Senna : דרך השמיים/ a caminho do Céu... 

Amor do meu coração e de todo o Brasil...


Raquel Teles Yehezkel 

Israel 1.5.2024






sexta-feira, 19 de abril de 2024

Um anjo varreu a tristeza da casa...

Mulheres caem e se levantam,

Se afagam, 

Se apoiam,

Se dividem,

Se completam, 

Se divertem

Hoje

Porque viver é preciso

Porque seguimos 

em direção ao amanhã.


Assim, 

saímos para sentir 

o ar no rosto, 

dar abraços, 

rever amigos, 

ouvir uma música 

que acalenta 

e embala a alma...


E foi então que

"Um anjo varreu a tristeza da casa.

Com suas asas feitas

de alguma coisa que não conhecemos

Varreu como varrem ruas e praças

Juntou tudo em suas mãos,

soprou, soprou, soprou" - exatamente como escreveu um dia Roseane Murray, muito antes de ser liberada do hospital após sofrer ataque de pitbulls e perder orelha e braço direito em Saquarema...  "Estou viva, mas como no livro que lemos no Clube da Casa Amarela 'Escute as Feras', de Nastassja Martin, a história da mulher que foi atacada por um urso, lutou e venceu, e no final, é uma mulher meio humana meio ursa, eu também me sinto meio humana meio mulher selvagem, porque venci", comentou a escritora, em matéria publicada no G1.

E assim, mulheres meio israelenses, meio brasileiras, umas alquebradas porque perderam parentes tão próximos recentemente, outras porque sentem como se também os tivessem perdido, se encontraram no mercado / shuk de Petah Tikva para esquentar abraços e ouvir o forró de Paulinho Ferreira, Andre Golovaty, Omri Gaster, Guilherme Botler, DJ Felipe Castro, ver nossos alunos de português, israelenses instrutores de forró - isso mesmo! - Omri Makdasi, Neta Yalon e Shirley Shatzky, a cantora israelense mais neshamá que existe, Noa Peled - forrozeira da nata, a produtora desses encontros, Mai Grafi Halevi, reunidos para celebrar a vida...

Porque

viver é melhor que morrer... 


Porque

"-- dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. 

Mulher é desdobrável. Eu sou", já ensinava minha sábia conterrânea mineira Adélia Prado.

"Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas" - me lembra Lygia Fagundes Telles através da página de Mary Kirschbaum - outra valente.

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Pessach sameach ve shaket...

Raquel Teles Yehezkel 

Israel 18.4.2024

Para Florica Valeanu, Simone Gabay, Daniela Dvori, Mel Larrosa, Rachel Even e a fotógrafa desses momentos preciosos Tamar Matsafi

Com Daniela e Mel, em Forró 
no Shuk Petah Tikva, Israel

Com Florica, Simone e Daniela 
no mercado de Petah Tikva, Israel 


segunda-feira, 15 de abril de 2024

Minha gentil Tel Aviv-Jaffa

Minha gentil Tel Aviv-Jaffa

De areias úmidas e cálidas...

De garotas em pares,

De mulheres independentes e descoladas,

Com seus cachorros, livros, bikes, pranchas, bolas...

Mulheres-mães, mulheres-filhas, mulheres-parceiras, 

De biquínis, de hijabs, perucas, roupas longas ou curtas, 

Vestem o que querem, como querem...

Põem a mesa para um Shabat ou um Iftar, 

Vão à feira, à passeatas, 

Dirigem escritórios, empresas, negócios,

Cuidam de casa, trabalham em lojas, cafés e bares... 

Sentam em cafés com amigas trocando confidências,

Tocando suas próprias vidas...

Minha gentil Tel Aviv-Jaffa 

de areias úmidas e cálidas...

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Tel Aviv-Jaffa 8 de março 2024

Texto e fotos: Raquel Teles Yehezkel 





Foto de Daniel Ring







sábado, 6 de abril de 2024

Estação das flores

Tons de branco e rosa 

pintam campos, canteiros, jardins, 

testemunhando silêncios e tumultos...


Flores de amêndoas vestem a terra 

com impertubável beleza...

A vida flui,

floresce, 

indiferente a tou-vavous...


Estação das flores...

A primavera trazendo explosões 

de pequenas alegrias...

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Raquel Teles Yehezkel

Israel, 12 de abril de 2024


Foto de Sarit Brosh - Nof Tzvaim Road, Israel

sábado, 16 de março de 2024

Talvez uma pomba alce voo sobre nós / אולי יונה תעוף מעלנו

(Português / עברית)

Um sol frio antecede a primavera, aquecendo aos poucos os leitos úmidos e pegajosos que serpenteiam profundezas...

Traz à tona galhos quebrados, flores murchas e sementes maltratadas durante todo o inverno... Talvez refloresçam...

Quem sabe quando o sol chegar a pino derreta também corações endurecidos nos castigos do longo inverno...

Diante ao rio que corre, a alma pede água para lavar lágrimas cristalizadas...

Diante ao rio que corre, há possibilidades para pequenas alegrias... 

Ela seria novamente feliz se as profundezas se abrissem, se derramassem...

Talvez trombetas quebrassem para sempre barreiras, anunciando palavras de ordens que nos surpreendessem...

Talvez o rio da vida nos reunisse finalmente...

Atravessamos nuvens densas, tempestades destrutivas, talvez haja sementes germinando à superfície em busca de novo respiro... 

Talvez uma pomba alce vôo sobre nós... Talvez...

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Raquel Teles Yehezkel 

Para Florica Valeanu 🌷

Parque Nacional Nascentes do Rio Yarkon 16.3.2024

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שמש קרה מקדימה את האביב, מחממת באיטיות מיטות לחות ודביקות המתפתלות בעומקים...

מעלה על פניו ענפים שבורים, פרחים קמלים וזרעים שלא טופלו... אולי יוכלו לפרוח מחדש...

 מי יודע, אולי כשהשמש תזרח גבוה היא תמיס גם לבבות שהוקשו מעונשי החורף הארוך...

מול הנהר הזורם אפשרויות לשמחות קטנות נפתחות... והנשמה מבקשת עוד מים לשטוף דמעות מיובשות...

היא תשמח שוב אם המעמקים ייפתחו וישפכו...

אולי חצוצרות ישברו חומות לנצח, ויכריזו על פקודות מפתיעות...

אולי נהר החיים סוף סוף יאחדו בינינו מחדש...

עברנו בין עננים צפופים, סערות הרסניות, אולי יש זרעים הנובטים עכשיו על פני השטח בחיפוש אחר נשימה חדשה...

אולי יונה תעוף מעלינו... אולי...

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לפלוריקה ולאנו 🌷גן לאומי מקורות הירקון 










 

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Uma tarde antes do caos

Foi uma sexta incomum, a tarde de 6 de outubro... 

Já havia passado Rosh Hashaná (Ano Novo judaico), Yom Kipur (Dia do Perdão) e com aquele por de sol entrávamos no Shabat e também último dia da semana de Sucot (Tabernáculos) que finda sempre com a celebração de Simchat Torah, marcando o início de um novo ciclo de leitura da Torah em todas as sinagogas de Israel e do mundo. 

Havia um clima festivo em todo o país. Uma tarde tão linda e inquieta que decidimos, Nissim e eu e todo am Israel, sair para um passeio e conhecer a nova pista de caminhada e ciclismo, recém-inaugurada, que ligava a praia Tel Baruch, ao norte de Tel Aviv, à praia Hatzuk, de Ramat Hasharon. Um sonho acalentado por décadas. Estava lotado, as crianças estavam de férias e muitos adultos também, era fim de verão e Israel apresentava-se ali linda, feliz e promissora. 

No trabalho, no Instituto Guimarães Rosa em Tel Aviv, iniciaríamos na segunda-feira, dia 9 de outubro, novo semestre escolar com 50 alunos inscritos para os cursos de português; em 12 de outubro, realizaríamos as III Olimpíadas de Português para 19 crianças inscritas; no dia 24, haveria a aplicação do exame Celpe-Bras de proficiência em português, para 3 candidatos inscritos. O novo ano parecia promissor... 

Planos jogados ao vento... pois nada nada nos prepararia para o amanhecer do dia seguinte... O dia 7 de Outubro...

Enquanto inaugurávamos novo calçadão e sentávamos às mesas para receber o Shabat, milhares de jihadistas se preparavam para executar um pogrom... Não dormiram, pois às 6h da manhã já haviam invadido, em estado de êxtase, o sul de Israel. 

Um exército formado por mais de dois mil soldados e seguidores do Hamas entraram armados naquele dia arrombando a fronteira que separava Israel de Gaza, iniciando uma guerra. Outros milhares se preparavam em Gaza para disparar baterias de mísseis e receber mais de duas centenas de reféns israelenses, vivos ou mortos, seminus, descalços, arrastados de suas camas, suas casas e de um festival de música, para hospitais, casas, túneis e pelas ruas de Gaza em festa... Enquanto Israel dormia em berço esplêndido e despertava em letargia ao som de insistentes sirenes e foguetes... Enquanto sua gente perdia suas vidas e clamava por socorro... 

Meses se passaram... Ainda há reféns sob a tutela de terroristas. Para nós, aquele dia deu início a outro calendário, contado a partir dos terríveis acontecimentos que nos marcaram para sempre naquela manhã nefasta. Vivemos desde então num pesadelo coletivo. Traumas, histórias particulares e coletivas que jamais pensei vivenciar em toda a vida - ouvir sirenes e esperar pelas explosões, acompanhar diariamente depoimentos de vítimas e de familiares dos sequestrados e dos combatentes, descobrir que a segurança é uma linha muito tênue, que a maldade latente vive tão próxima e sentir o antissemitismo tão vivo e atual... 

Desde aquele dia, cerca de 120 mil israelenses foram deslocadas de suas casas nas fronteiras do sul e do norte do país, tornando-se refugiados em seu próprio país, pois não podem ou não têm para onde voltar... 

Uma vez, questionada sobre a triste situação dos civis em Gaza, respondi: Me dói a perda de cada vida inocente, daqui ou de lá, a dor é uma só... Se eu perdesse 8 filhos e você perdesse 2, a sua dor é menor que a minha? Há muita dor na guerra e estamos todos dentro dela.

Mais de 12 mil mísseis foram lançados contra Israel, pelo Hamas, o Hezbollah e até pelos Houthis do Iemên, país distante, sem fronteiras e sem história pregressa de conflitos com Israel... Pode parecer que levamos uma vida normal porque temos estruturas de abrigos e antimísseis, mas e se Israel não tivesse desenvolvido o melhor sistema antimísseis do mundo, como seria?... 

Mais da metade do exército de Israel é formada por reservistas. Neste momento cerca de 400 mil israelenses comuns, pais de famílias, médicos, engenheiros, músicos, professores, empresários, profissionais liberais deixaram suas famílias e seu trabalho e se juntaram às forças de defesa do país. Cada um que morre é um mundo que se desmorona, famílias e amigos vivendo lutos sem fim. Por isso conhecemos bem a dor do outro, a dor de pessoas comuns como nós. Mas neste momento estamos cuidando das próprias feridas, esperando que cada um dos nossos reféns e dos nossos soldados retorne com vida, e que a guerra chegue logo ao seu fim... 

As imagens da nova pista, naquela tarde de 6 de outubro, vistas agora, parecem de um tempo distante, banhadas por traumas que permanecem no cotidiano de muitos, por anos e até gerações, pelo pai, pela mãe, pelo filho ou filha, parentes e amigos que não voltaram ou que voltaram feridos física ou psicologicamente...

Parece que perdemos a proporção da vida; as dores são tão grandes e reais que não nos sentimos no direito de sofrer dores "menores", como a de um ente querido temporariamente distante ou a perda de um animal de estimação... Nem no direito de comemorar aniversários, casamentos, nascimentos... A vida continua, os aniversários, casamentos, nascimentos também, mas como que em ponto morto, na força da inércia, na certeza de que devemos seguir.

Nos tornamos tão sensíveis que a simples visão de pais e filhos juntos na rua comove... A vida tomou um outro rumo, uma outra dimensão... E os números, incapazes de traduzir sofrimento...

Raquel Teles Yehezkel

Israel, 7 de janeiro de 2024.

Fotos de Tami Melamed, que como eu também passeava pela orla ao anoitecer de 6 de outubro de 2023.

Tel Aviv - Ramat Hasharon 6.10.2023 
Foto de Tami Melamed