Um povo é formado por pessoas que se identificam como tal por terem em comum língua, costumes, tradições, festas, textos, canções, brincadeiras, códigos de comportamento – escritos ou não, história, e que, durante sua vida, transmitem a cultura absorvida para os que estão à sua volta e para a geração seguinte, de forma consciente ou não. Nesse sentido, pode-se considerar os judeus como um povo, pois, mesmo distantes territorialmente mantêm um patrimônio cultural comum. O mesmo pode-se dizer para aqueles que crescem e se desenvolvem em Israel, onde a cultura judaica pode ser transmitida de forma organizada e intencional, através de políticas públicas ou privadas, conforme o interesse de grupos maiores ou menores.
Sendo a cultura algo amplo, mutável e nem sempre passível de contabilização, pode-se dizer que há judeus como há seres humanos: de todos os tipos, matizes, bons e maus, de todas as cores e níveis intelectuais, religiosos ou laicos, mas, que de uma forma ou outra, se identificam por um esteio cultural comum.
Entre diferentes grupos que espelham a diversidade do judaísmo, escolhi refletir sobre os judeus religiosos, conhecidos também por ortodoxos. Aqueles de longas barbas, com ou sem peiot / cachos sobre as orelhas; que usam kipá / solidéu, chapéu e vestem preto, com tsitsit / franjas aparecendo sob a camisa branca; andam de olhos baixos, por medo ou respeito, para não encontrar outro par de olhos, portas da alma, e invadir território alheio; e cujas mulheres usam vestidos joelho abaixo, mangas três-quartos e cobrem o cabelo com lenço, chapéu ou peruca, seja sob o sol ardente de Israel ou a neve de New York; andam em família, empencados de crianças pelas ruas, pois filhos são bênçãos de Deus, e por isso não fazem controle de natalidade. Na maioria das vezes, são vistos de forma estereotipada pela ótica da cultura moderna e globalizada. Ainda assim, tenho atração, admiração e respeito por esse grupo. Até mesmo certa inveja por não ter nascido como eles, certo sentimento de nostalgia por algo que não vivi, lembrando sua simplicidade, valores e riqueza cultural desde a vida de outrora. Talvez fosse mais simples viver assim, sem muitos questionamentos, dentro de limites bem conhecidos e estruturados em costumes e tradições que se provaram suficientemente fortes para se perpetuarem através de séculos e gerações.
Quando olho para um judeu religioso, vejo nele a pessoa que reza três vezes ao dia (Shaharit / Manhã, Minchá / Tarde e Arvit / Noite). Nas orações da manhã e da noite são repetidas o "Shemá Israel", principal oração do judaísmo, um pacto que fala sobre o amor a Deus, a obrigação de transmitir seus ensinamentos aos descendentes e de preservar alguns costumes para lembrar a existência de Deus, como usar tsitsit e colocar mezuzá / marcador nos portais das casas para que Deus as protejam, como fez no Egito. Viu-se que quando os judeus que se encontravam isolados ou perseguidos na Diáspora - como foram os judeus da Etiópia e dos criptojudeus portugueses da região de Belmonte, remanescentes dos que passaram pela Inquisição - e seus descendentes já haviam se esquecido de quase todas as orações e costumes, ainda recitavam o Shemá Israel, Adonai Eloheinu, Adonai Echad / Escuta Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é único - primeiro verso do Shemá. Vejo esse religioso ao acordar e ao dormir, colocar a mão sobre os olhos do filho pequenino ao recitar o primeiro verso do Shemá. Vejo-o recitar a longa Birkat ha-Lechem / Benção do Pão, toda vez que come pão, por ser este o alimento que simboliza a vida. Vejo-o, na bênção da manhã, agradecer por mais um dia de vida ao abrir os olhos; afirmar sua fé no Criador do Universo; pedir proteção para seu povo e para si mesmo; para protegê-lo de más tentações, de línguas maldosas, de pessoas más, de calúnias, de traições e para aproximá-lo das pessoas boas e dos ensinamentos da Torá. Toda manhã, essa bênção lembra-o de que há atitudes das quais se colhem os frutos ainda nessa vida e guarda-se créditos para a vida vindoura, e descreve-as: honrar pai e mãe, fazer caridade, abrigar visitantes, fazer as orações do dia, visitar doentes, ajudar a realizar casamentos, acalentar enlutados, concentrar-se nas orações, fazer as pazes entre amigos e casais que tenham se desentendido e estudar a Torá. Vejo-o fazer 100 bênçãos ao dia, entre elas, as de abençoar a água ou qualquer bebida e alimento antes de levá-lo à boca. Vejo-o lendo e se dedicando ao estudo da Torá, se dedicando a compreender e a praticar os ensinamentos contidos na Parashat haShavua / Porção da Semana, quando lê a porção semanal da Torá, até completar sua leitura completa no ciclo de um ano, de Simchat Torá / Alegria da Torá, logo após o Ano Novo judaico, até Simchat Torá seguinte. Vejo-o seguindo as regras da alimentação judaica kosher / casher, cuja a prescrição central gira em torno de não misturar leite e carne numa mesma refeição, seguindo um preceito da Bíblia que diz que não há de se comer a carne de uma novilha no leite de sua própria mãe. Ou não comer carnes de animais que não tenham as patas fendadas ou não sejam ruminante, e nem peixes que não tenham escamas e nadadeiras - daí a restrição de comer alguns tipos de carnes e frutos do mar. Também há que se doar para a caridade o dízimo de seu rendimento. Em Israel somente, um alimento também pode se tornar não-casher se uma pequena parte da produção não foi dispensada ou deixada no campo para a colheita dos pobres, ou se não foram seguidas uma série de normas descritas na Torá, como, entre outras, deixar o campo descansar a cada sete anos. Vejo-o também nas velas de Haguim / Festas judaicas e Shabat, às sextas ao cair do sol, no Kidush / Bênçao à família e ao Sábado como um dia de descanso consagrado a Deus, na consagração do vinho e do pão / halá, um pão trançado, à mesa do Shabat. Nada das tecnologias desenvolvidas pelo homem são permitidas, portanto, não se dirige carros; não se ligam e desligam luzes - as luzes das salas e banheiros permanecem acesas e dos quartos apagadas; não se fala ao telefone; não se ouve música; não se escreve. Também, não se acende fogo – cozinha-se antes do por do sol, deixando a comida em calor brando, numa chapa elétrica ligada antes da entrada do Shabat e desligada só após o por do sol seguinte. E, no fim do Sábado, faz-se uma bênção que divide o sagrado do mundano, o Shabat dos outros dias da semana. Nada em seu dia deve ser em vão, por isso, quando se reúnem em momentos de alegria, para festejar um aniversário, um casamento, ou em momentos tristes, para prantear ou lembrar a morte de alguém, vão sempre fazer uma pausa para dizer Dvrei Torá / Ditos da Bíblia, ou seja, do âmbito do divino, e não ficar apenas no mundano. Seguindo as mitzvot / os preceitos, os religiosos acreditam que estão sendo pessoas melhores, mais justas, mais próximas dos desígnios de Deus, consagrando-se ao serviço divino. Com tanto esforço, como não gostar deles então?
Diferente de outras culturas, o judaísmo tem a peculiaridade de ser transmitido pela linhagem materna. Conforme a Halachá, código de leis baseadas na Torá, é judeu quem se converteu ou quem nasce de mãe judia, seguindo ou não as prescrições. A análise da descendência pela linhagem materna é no mínimo curiosa. Primeiro pela razão de que um pai pode disseminar sua semente mundo afora, sem estar semeando o judaísmo, o que sugere uma liberdade maior ao homem. Mas, numa segunda reflexão, essa tradição já não se parece tão machista quando se pensa que a paternidade não é o mais relevante para o judaísmo. No caso dos judeus, cujas comunidades sofreram inúmeras perseguições e humilhações, filhos de mulheres violentadas ou utilizadas à revelia como mercadoria sexual - como o caso das Polacas no Cone Sul, por exemplo -, o judaísmo permaneceu garantido à sua descendência.
Laicos, a grande maioria dos judeus não vive conforme as prescrições, e muitos nem se interessam por elas, as desconhecem ou até as rejeitam. Mas, ainda assim, de uma forma ou outra, seguem, uns mais outros menos, as tradições principais, como a brit-milá / circuncisão, o bar-mitzva / maioridade religiosa, a hupá / casamento judaico, cumprem o luto, comemoram as festas judaicas, acendem velas e fazem a refeição do Shabat, vão à sinagoga em ocasiões especiais e jejuam, ainda que parcialmente, em Yom Kipur / Dia do Perdão.
A exigência quanto a observância aos preceitos da Halachá – cuja rigidez se justifica pelo argumento de que não há mudanças no texto da Torá, tendo sido reproduzido letra por letra desde os tempos de Moisés, e que, portanto, não há como flexibilizar a Halachá - pode causar uma lista de dificuldades e empecilhos a quem queira se converter ao judaísmo pelo caminho tradicional. Dessa forma, há milhares de pessoas no mundo ou em Israel – filhos de casamentos mistos, de refugiados e de turistas que se identificam com esse povo – que encontram barreiras e dificuldades à sua conversão, sejam de cunho religioso ou político. No âmbito político, sendo Israel estrategicamente um Estado judaico, todo judeu no mundo tem direito à sua cidadania, portanto, o país não tem interesse em abrir suas fronteiras a quem assim o decida, e, por isso, controla o sistema de conversões ao judaísmo através do Rabinato, órgão institucional ligado ao Estado, que tem poderes para realizar e autorizar conversões. No âmbito religioso, os ortodoxos afirmam que, para se fazer parte um povo, como qualquer outro, deve-se aceitar as leis que o regem; no caso dos judeus, a Halachá. Ainda que tenham a consciência de que ninguém consegue cumprir todas as leis, pois ninguém é perfeito, nem o mais justo dos justos, a priori, não se pode escolher quais leis se quer cumprir e quais não. Por isso, muitas vezes, os convertidos são mais fervorosos no cumprimento dos preceitos que os nascidos no judaísmo; eles se reconhecem judeus pelo cumprimento das tradições, enquanto os nascidos de mãe judia ou crescidos em lar judaico têm a segurança de ser judeu, cumprindo ou não a Halachá.
Atualmente, os judeus têm um país onde podem professar sua fé e cultura em toda sua diversidade, dentro de uma democracia liberal, mas na História antiga e recente nem sempre foi assim. Nessa linha de pensamento, seria possível enxergar a população judaica religiosa como a principal guardiã dessa cultura. Até mesmo como os guardiões da Torá de Moisés, ou seja, da palavra divina. Se por alguma obra do homem ou do destino, acontecer algo no mundo que leve o homem a esquecer ou a perder todos códigos morais e éticos, os judeus guardariam de alguma forma, mesmo que de cor, todas as palavras da Torá, ipsis literis, tal como acreditam que lhes foi entregue por Moisés no Monte Sinai, como fizeram e fazem há milhares de anos, existindo, inclusive, técnicas para isso.
Tendo sido criada no Brasil, um país que gosta de se pensar liberal, quando ainda continua no âmbito de colônia cultural formada por uma sociedade patriarcal de classes - com uma aristocracia e população pobre ainda com mentalidade escravocrata do "sim, senhor e não, senhor" -, sempre me surpreendeu a segurança do judeu, de modo geral, mesmo quando perseguido por tiranos, de quem crê que ninguém é mais que ninguém e, portanto, não se curvando a não ser frente a Deus. E assim, seguiram no tempo com suas tradições, em silêncio, em shtltes, em guetos, em pequenas comunidades e sinagogas espalhadas pelo mundo, não se curvando nem para reis, nem presidentes, patrões ou pressões sociais. Seguindo as leis locais, mas mantendo em suas comunidades um código próprio de costumes, baseado na Torá. E esse código que descreve rituais, tradições e condutas os manteve como povo durante séculos.
Amar o próximo, aquele se assemelha a nós, é sempre mais fácil. Difícil é o exercício de viver com respeito ao diferente, ao que nos é estranho. Num mundo moderno e digitalizado como o atual, que tende a homogeneização, talvez seja mesmo difícil compreender os que optaram por uma vida regida por costumes tão antigos, que desejam seguir como sempre seguiram, fazendo suas orações, festividades e tradições, como seus antepassados.
Texto de Raquel Teles Yehezkel
10/8/2019