Foi uma sexta incomum, a tarde de 6 de outubro...
Já havia passado Rosh Hashaná (Ano Novo judaico), Yom Kipur (Dia do Perdão) e com aquele por de sol entrávamos no Shabat e também último dia da semana de Sucot (Tabernáculos) que finda sempre com a celebração de Simchat Torah, marcando o início de um novo ciclo de leitura da Torah em todas as sinagogas de Israel e do mundo.
Havia um clima festivo em todo o país. Uma tarde tão linda e inquieta que decidimos, Nissim e eu e todo am Israel, sair para um passeio e conhecer a nova pista de caminhada e ciclismo, recém-inaugurada, que ligava a praia Tel Baruch, ao norte de Tel Aviv, à praia Hatzuk, de Ramat Hasharon. Um sonho acalentado por décadas. Estava lotado, as crianças estavam de férias e muitos adultos também, era fim de verão e Israel apresentava-se ali linda, feliz e promissora.
No trabalho, no Instituto Guimarães Rosa em Tel Aviv, iniciaríamos na segunda-feira, dia 9 de outubro, novo semestre escolar com 50 alunos inscritos para os cursos de português; em 12 de outubro, realizaríamos as III Olimpíadas de Português para 19 crianças inscritas; no dia 24, haveria a aplicação do exame Celpe-Bras de proficiência em português, para 3 candidatos inscritos. O novo ano parecia promissor...
Planos jogados ao vento... pois nada nada nos prepararia para o amanhecer do dia seguinte... O dia 7 de Outubro...
Enquanto inaugurávamos novo calçadão e sentávamos às mesas para receber o Shabat, milhares de jihadistas se preparavam para executar um pogrom... Não dormiram, pois às 6h da manhã já haviam invadido, em estado de êxtase, o sul de Israel.
Um exército formado por mais de dois mil soldados e seguidores do Hamas entraram armados naquele dia arrombando a fronteira que separava Israel de Gaza, iniciando uma guerra. Outros milhares se preparavam em Gaza para disparar baterias de mísseis e receber mais de duas centenas de reféns israelenses, vivos ou mortos, seminus, descalços, arrastados de suas camas, suas casas e de um festival de música, para hospitais, casas, túneis e pelas ruas de Gaza em festa... Enquanto Israel dormia em berço esplêndido e despertava em letargia ao som de insistentes sirenes e foguetes... Enquanto sua gente perdia suas vidas e clamava por socorro...
Meses se passaram... Ainda há reféns sob a tutela de terroristas. Para nós, aquele dia deu início a outro calendário, contado a partir dos terríveis acontecimentos que nos marcaram para sempre naquela manhã nefasta. Vivemos desde então num pesadelo coletivo. Traumas, histórias particulares e coletivas que jamais pensei vivenciar em toda a vida - ouvir sirenes e esperar pelas explosões, acompanhar diariamente depoimentos de vítimas e de familiares dos sequestrados e dos combatentes, descobrir que a segurança é uma linha muito tênue, que a maldade latente vive tão próxima e sentir o antissemitismo tão vivo e atual...
Desde aquele dia, cerca de 120 mil israelenses foram deslocadas de suas casas nas fronteiras do sul e do norte do país, tornando-se refugiados em seu próprio país, pois não podem ou não têm para onde voltar...
Uma vez, questionada sobre a triste situação dos civis em Gaza, respondi: Me dói a perda de cada vida inocente, daqui ou de lá, a dor é uma só... Se eu perdesse 8 filhos e você perdesse 2, a sua dor é menor que a minha? Há muita dor na guerra e estamos todos dentro dela.
Mais de 12 mil mísseis foram lançados contra Israel, pelo Hamas, o Hezbollah e até pelos Houthis do Iemên, país distante, sem fronteiras e sem história pregressa de conflitos com Israel... Pode parecer que levamos uma vida normal porque temos estruturas de abrigos e antimísseis, mas e se Israel não tivesse desenvolvido o melhor sistema antimísseis do mundo, como seria?...
Mais da metade do exército de Israel é formada por reservistas. Neste momento cerca de 400 mil israelenses comuns, pais de famílias, médicos, engenheiros, músicos, professores, empresários, profissionais liberais deixaram suas famílias e seu trabalho e se juntaram às forças de defesa do país. Cada um que morre é um mundo que se desmorona, famílias e amigos vivendo lutos sem fim. Por isso conhecemos bem a dor do outro, a dor de pessoas comuns como nós. Mas neste momento estamos cuidando das próprias feridas, esperando que cada um dos nossos reféns e dos nossos soldados retorne com vida, e que a guerra chegue logo ao seu fim...
As imagens da nova pista, naquela tarde de 6 de outubro, vistas agora, parecem de um tempo distante, banhadas por traumas que permanecem no cotidiano de muitos, por anos e até gerações, pelo pai, pela mãe, pelo filho ou filha, parentes e amigos que não voltaram ou que voltaram feridos física ou psicologicamente...
Parece que perdemos a proporção da vida; as dores são tão grandes e reais que não nos sentimos no direito de sofrer dores "menores", como a de um ente querido temporariamente distante ou a perda de um animal de estimação... Nem no direito de comemorar aniversários, casamentos, nascimentos... A vida continua, os aniversários, casamentos, nascimentos também, mas como que em ponto morto, na força da inércia, na certeza de que devemos seguir.
Nos tornamos tão sensíveis que a simples visão de pais e filhos juntos na rua comove... A vida tomou um outro rumo, uma outra dimensão... E os números, incapazes de traduzir sofrimento...
Raquel Teles Yehezkel
Israel, 7 de janeiro de 2024.
Fotos de Tami Melamed, que como eu também passeava pela orla ao anoitecer de 6 de outubro de 2023.


