domingo, 12 de março de 2023

Camões, Renato Russo e um chimarrão

Há um tempo, um amigo argentino, que gosta de chimarrão, caminhadas e de literatura, e vai às vezes ao centro cultural da Embaixada do Brasil em Tel Aviv, onde trabalho, buscar livros para seus passatempos, levou consigo "Os Lusíadas", de Luis Vaz de Camões. Dias depois, se referindo à leitura do livro que levara, me perguntou via mensagem: "Você acha difícil?". Eu disse que achei muito lindo quando li na escola, mas que havia lido com acompanhamento de um professor. Ele respondeu: "É mesmo, precisa um pouco mais de paciência e atenção. Mas nada que tamanha obra não mereça! 😌💪". Resposta que me encantou pela satisfação que expressava em aceitar o desafio: um argentino em Israel, lendo Os Lusíadas em português!, algo nada corriqueiro.

Passaram-se uns dias, e Marcos Ivan Fernandez, o argentino, me manda a foto do livro, um chimarrão e, pasmem, pães de queijo à brasileira, à sombra de uma árvore... Estava posto o desafio! Mais tarde, manda a foto de uma página com um poema e a seguinte legenda: "E eu toda a vida acreditei que Renato Russo criou isso kkkkkk Você sabia disso?!". Não, eu não sabia!, respondi...
O que eu sabia é que na música de Renato Russo - Legião Urbana a que ele se referia havia uma interlocução com um trecho muito conhecido da Bíblia, que eu achava ser parte dos Salmos...
Intrigadíssima, corri para fazer uma pesquisa, digitando "ainda que eu falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria"... e logo encontrei que era Paulo de Tarso em: 1 Coríntios 13: "Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.
E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria".
E postei este trecho para o amigo.

Abaixo, o poema de Camões me enviado por Marcos Ivan:

"Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?"

Movida pelo bate-papo, nessa pesquisa descobri que "Monte Castelo" de Renato Russo, que eu tanto conhecia, é quase que literalmente o poema de Camões musicado, iniciado e terminado por uma frase de Paulo em Carta aos Coríntios - algo que os entendidos já sabiam, claro, mas que eu só vim a saber por meio dessa conversa...

Se não bastassem as surpresas, Marcos Ivan ainda fez, em português, a análise de "Os Lusíadas": "O poema é épico! Tem tudo! Engenhoso, poderoso! Ágil, muita arte junta, e a literatura do Camões é perfeita!!!! Sem dúvida um texto universal!!!! Começa já com o panteon dos deuses greco-romanos discutindo sobre o futuro dos lusos!!!! Nooossa, tá ótimo!!! A parte histórica da obra também é ótima! Antes do início do primeiro canto, tem uma carta de aprovação da inquisição!!! Achei um detalhe muito doido e histórico".
E termina os comentários assim: "Hoje aprendemos algo! O dia valeu a pena!!!! Kkkkkk😌🤝💪". 

Só por diálogos como este, o meu trabalho já valeria a pena... Mas muito mais que isso - é fascinante! 

Segue a descrição do leitor argentino ao deparar-se, com um chimarrão às mãos, com Renato Russo nas páginas de Camões. "O que mais me explodiu na cabeça foi que quando comecei a ler o poema, lá no segundo verso comecei a ler cantado, com um ritmo de canção. Isto foi inconsciente por um momento até que notei e comecei a raciocinar kkkk E quando entendi quasse morri rsrsrsrs. Imagina uma letra de rock que você amou na adolescência, que ainda hoje é tão atual, ser uma poesia que data de vários séculos atrás! Essas doces surpresas literárias!!!! Kkkk". 

E minha surpresa não foi em nada menor que a dele...

***

Raquel Teles Yehezkel 

Israel 13.3.2023

Fontes: 

https://www.bibliaonline.com.br/acf/1co/13

https://m.letras.mus.br/blog/analise-da-musica-monte-castelo/ 

https://youtu.be/ArcaQkt0bhA


Foto de Marcos Ivan Fernandes

O poema de Camões e a conversa 
com Marcos Ivan 

Da Wikipedia 



domingo, 5 de março de 2023

Língua e literatura nas mídias sociais

Costumo seguir alguns linguistas e professores de literatura. E esta não é uma atividade meshaamemet / entediante. Pasmem, sou constantemente pega por surpresas e discussões incríveis! Pelo menos pra mim.

Por exemplo, o professor Marcos Bagno postou em 3.3.2023 algo sobre o episódio de Fernanda Torres ter citado que a etimologia de "coitado" seria de coito, quando, segundo ele, qualquer consulta a um dicionário mostraria que se origina de "coita" que significa "sofrer". Em 4.3.23, o professor Sírio Possenti aproveitou essa discussão para acrescentar que leu numa revista uma resenha interressante sobre a língua, à qual fez a ressalva de que o autor não utiliza o conceito de "português popular", mas de "português errado", conceito este inadequado na linguística moderna ao se referir a um falante nativo de uma língua. 

Nesta mesma linha, Bagno fez outra postagem em 4.3.23 criticando escolhas no uso da língua, por uma revista que ele costuma ler, dizendo que nela foi abolido o uso legítimo do gerúndio, amplamente difundido na língua brasileira, em prol da forma "a + verbo no infinitivo" como usado em Portugal. E que também estariam abolindo o uso da oração adjetiva (relativa), como em: "a reforçar as desigualdades", quando deveria ser "que reforça as desigualdades".

Ainda sobre língua e literatura, a postagem mais interessante, que despertou este texto, foi feita em 4.3.23 pelo professor Deonisio da Silva. Ele postou um documento levantado numa pesquisa de Claudio Soares, mostrando que o conto "O Alienista" de Machado de Assis, originalmente publicado em "folhetim", tinha um fim diferente daquele que conhecemos dos livros de Machado. Nos comentários do post, Cláudio Soares, autor da pesquisa, afirma que isso não surpreendeu os pesquisadores, pois é sabido que entre a publicação em folhetins de então até a publicação em forma de livro, o texto poderia sofrer revisões. E cita como exemplo dessas mudanças um "lapso" existente em Dom Casmurro, cuja história no folhetim começaria em Cantagalo enquanto no livro que conhecemos, começa em Itaguaí. 

Todas essas observações me levaram à reflexões sobre os saberes e informações disponíveis nas redes, me conectando a uma conversa com meu filho que recentemente optou por se desconectar delas com o objetivo de se dedicar à atividades mais significativas do seu dia a dia e se afastar das superficialidades difundidas pelas redes. Pelas muitas informações preciosas que recolho das mídias sociais, umas mais relevantes outras menos, tendo a enxergá-las como meio de colher informações, e não apenas como fonte de distração, que também são, sem dúvidas. Informações que chegam em pílulas, cabendo a cada um se aprofundar ou não conforme seu interesse. Tudo ali disposto como em um bufê self-service onde cada um, a princípio, escolhe entre o joio e o trigo o que quer ler e ver. Mesmo consciente de que nem todos podem escolher, tendo a achar que a rede deveria nos servir, nos ser útil, abrir nossas cabeças para conhecimentos múltiplos, possíveis de serem filtrados por meio de mecanismos reguladores diversos. Caberia a quem regular o que ali se deposita? A quem caberia regular o seu uso? Esta é mais uma discussão desafiadora na pauta das atualidades... 

É incrível poder acompanhar em tempo real as mais modernas discussões sobre a nossa língua e literatura e, ao mesmo tempo, a ampla discussão sobre o uso das mídias sociais...

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P.S. As reflexões que levanto na mídia social, que os professores trazem às redes, muitas vezes são as sementes que podem gerar estudos, resenhas ou artigos. Com algumas mudanças...

Israel 5.3.2023

Raquel Teles Yehezkel:

Fontes:

- Postagens de Deonisio da Silva sobre o final do conto "O Alienista" de Machado de Assis e sobre o trabalho de Cláudio Soares. Link acessado em 5.3.2033: 

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid04ih6uVPhG23GrKN6jnJSenDYdYAmDJYubzjDu6H6YyNzfqMDVGfkkU3LWrfRoH9Ql&id=100000369896973&mibextid=Nif5oz 

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid0uimzSxFgzSTNuLK3nbstfeR7LDCQPdGJeMueLAYG874VAi3oVD9q1G4cuj4TkmN2l&id=100000369896973&mibextid=Nif5oz

- Link das postagem de Marcos Bagno, acessadas em 5.3.2023 de

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid02vTuukYqQRdVAH8njiBLTa5xcpQNTDDFnQwV6CbmPJMLunhXtDDYg4YmpkhdEsVgMl&id=100002532385353&mibextid=Nif5oz

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid02nwWW4guzf5YyENH4qzVPKXFqzT7HRLsZjU2NJU4WecMckTbX2v89bv4UvXa8uLrzl&id=100002532385353&mibextid=Nif5o

- Link da postagem de Sírio Possenti acessadas em 5.3.2023: 

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid0GnQEXyyjKirnyESBJ5zDjCGPPi8GnN4VZT48JhbX83BQBsvnoPguWzbDLkv6j5P2l&id=100012193955602&mibextid=Nif5oz

Link para postagem de Cláudio Soares sobre mudanças em Dom Casmurro:

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid024nBm7zHRNjzgVS16yPretQxLn8m3T3FGnmfsDvSw6FMfnEauLpfGvNGRJ2p8A6rol&id=589386353&mibextid=Nif5oz


Capa de "O Alienista" de Machado de Assis