domingo, 26 de fevereiro de 2023

O último Carnaval

Nada do que foi será de novo 

do jeito que já foi um dia...

Lá se foi mais um Carnaval

marcado por alegrias e tristezas, 

na natureza revolta - no litoral paulista, 

na violência em Nablus, 

na reforma judiciária que o governo bibista tenta impor,

na decadência da saúde pública,

nos escombros dos terremotos

na Turquia e na Síria...

Grandes, pequenos e infinitos 

mundos em desabamentos...

E mesmo em meio

à tristeza

à merda, 

é possível nascer uma flor,

um sorriso, 

um único ato 

de amor... 

Que nos mantém vivos

na espera

esperança...

na vida...

Na alegria de mais um Carnaval...

Como uma onda no mar...

Só mesmo a poesia

pra dar conta 

do que não se pode dar conta...

Só mesmo a poesia...

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Israel, Carnaval 2023 




quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

To the lovely Alon

"To the lovely Alon, Keep up the amazing work! The world is so lucky to have you in it - here's to a wonderful year ahead! 

With love, the Citizen Cafe team.”

As flores, o vinho e o cartão, meu filho caçula recebeu no Brasil, trabalhando para uma empresa em Israel, em regime de home office enquanto passa uma temporada de 4 meses por lá. Quando não há ninguém o observando de perto, ele mostra mais uma vez responsabilidade, dedicação e garra em relação ao trabalho. Atualmente, para se rodar o mundo, não se precisa mais abandonar o trabalho, muitas empresas aceitam o regime remoto e presencial intercalados. 

Alon foi durante 4 anos, com muito sucesso, o gerente de eventos do restaurante Claro, considerado entre os melhores de Tel Aviv. Trocou um ambiente bom de trabalho, em que ganhava melhor, por uma empresa em que pudesse trabalhar em regime híbrido para que se tornasse possível realizar outros sonhos. E após 6 meses de treinamento na empresa, foi liberado para um período de 4 meses fora, realizando seu sonho de estender tempo maior junto à família e amigos no Brasil. Trabalha com clientes falantes de inglês que se interessam em aprender hebraico! Faz parte do setor de vendas da Citizen Cafe, empresa que oferece cursos de hebraico online. É fácil? Não. Mas kanirê ele desempenha bem sua função. Este menino criativo, de coração gigante, bom companheiro, responsável e divertido fez por merecer um presente mefanek que o alcançasse do outro lado do mundo...

Ele é assim, uma luzinha no mundo. E para mim, um farol gigante que ilumina e aquece a minha vida. 

Israel 7.2.2023



Foto de Debi Barzellai 











sábado, 4 de fevereiro de 2023

Para gostar de ler Guimarães Rosa: o encontro de Riobaldo e Diadorim no de-Janeiro e São Francisco

A passagem que descreve o primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim (Reinaldo), protagonistas do romance de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, é para mim o trecho mais bonito da literatura brasileira. Por isso, nada mais indicado que lê-lo quando se procura um primeiro contato com o texto deste escritor genial. Porém, carece de ser lido bem devagar, buscando entender e apreciar cada linha do linguajar sertanejo. 

Indico a seguir dois textos para leituras que ajudarão a entender melhor e, em consequência, a amar os textos de Guimarães Rosa. O primeiro, é a carta escrita para Rosa pelo grande poeta Manuel Bandeira, sobre Grande Sertão e sua linguagem inovadora - como uma introdução ao estilo peculiar do escritor e ao tema do romance. Sobre o comentário nessa carta de Bandeira a respeito da decepção de Diadorim, ao final do livro, ser revelado como mulher, não me parece comprometer o caráter inovador do romance. Pelo contrário, tendo Diadorim vivido como homem a vida inteira, desde menino, quando apareceu pela primeira vez, até a sua morte, Riobaldo o amou de homem para homem, na vida do cangaço no sertão. Ele não amou uma mulher. E isso por si só era desconcertante nos anos de 1950 e mais ainda no cenário dos homens-machos do interior do Brasil. Diadoriam (Reinaldo) ser sexualmente mulher não muda o fato de Riobaldo ter amado Reinaldo, um amor homosexual, sendo Diadorim o primeiro protagonista trans do romance brasileiro.

O segundo texto é o trecho do romance que descreve o primeiro encontro entre os dois protagonistas, destacado em matéria da revista online "Verso, Prosa e Arte". Nele, Riobaldo narra a sua história para um interlocutor, um homem culto, que vai anotando tudo o que ouve e vê em caderninhos... Este interlocutor, que não fala nunca, que não dialoga apesar de ser inquirido o tempo todo pelo narrador, é o escritor em sua viagem pelo sertão mineiro. Marli Fantini Scarpelli (UFMG) genialmente denomina este texto de monodiálogo. São 600 páginas em um único fôlego, num monodiálogo difuso. Há também, nessa matéria, um curta-metragem lindíssimo, de 8 minutos: "Rio de-Janeiro, Minas", de Marilyn da Cunha Bezerra, imperdível, lento, lírico, para se ver sem pressa...

O rio São Francisco, poeticamente descrito neste trecho, é o mesmo que serviu para as primeiras "Entradas" dos desbravadores portugueses que partiram da Bahia adentrando o interior do Brasil Colônia... O velho Chico... Descrito por Rosa como um rio de águas tranquilas em sua superfície, mas obscuras em suas profundezas, assim como nós. "A aguagem bruta, traiçoeira – o rio é cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo (in GSV)." Quase como um mar, de onde de uma margem não se avista a outra, como nesse primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim (Reinaldo) - que se amararam desde então, adolescentes ainda - e que numa canoinha guiada por um menino "barranqueiro" entraram no temeroso Chico, vindos pelo rio de-Janeiro (de Minas)...

Minha mãe achava que o rio São Francisco era do pai dela rsrsrs pois nasceu e cresceu às suas margens, nas fazendas Lagoa Verde - Machados, em Bom Despacho, Minas. Durante toda a minha vida atravessei o São Francisco a caminho de minha cidade natal, Dores do Indaiá, ou a caminho da fazenda da família na região de João Pinheiro, Bonfinópolis, em Brasilândia. Em Morada Nova, quando se vai de Dores do Indaiá para a fazenda, se atravessa o Chico de balsa, ainda hoje. Em Três Marias, se pode comer peixe fresco às margens da represa, num dos restaurantes próximos à ponte.

Parafraseando Riobaldo, o São Francisco é o meu rio de amor. Ele disse isso a respeito do Urucuia, rio em que já pesquei chegando a ele por seu afluente, o Conceição, que cortava a fazenda do meu avô lá pelas bandas do Urucuia, região de Unaí. A Riacho do Campo, fazenda que a família mantém até hoje, onde cresci com os pés em veredas, fica situada ali, entre os rios Urucuia e o Paracatu, no município de Brasilândia de Minas, no sertão-veredas descrito por Rosa nesse grandioso romance.

Falar sobre este tema enche meu coração e, espero, possa também preencher o seu - como nos dias em que o velho Chico transborda às margens em alegrias...

Raquel Teles Yehezkel

Israel 3.2.2023

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Link para a carta de Manuel Bandeira a João G. Rosa. Acessado em 3.2.2023: 

https://www.revistaprosaversoearte.com/joao-guimaraes-rosa-carta-de-manuel-bandeira-o-romance-de-riobaldo/?amp=1

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Link para o filme e o trecho em que Riobaldo e Diadorim se conhecem - acessado em 3.2.2023:

https://www.revistaprosaversoearte.com/riobaldo-e-diadorim-o-encontro-no-porto-do-rio-de-janeiro-e-a-travessia-pelo-rio-sao-francisco/?amp=1 

Rio São Francisco

Córrego Caiçara, Riacho do Campo, MG



quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Entre a sala e a cozinha

Comecei o dia pensando em minha mãe. Na vivência dela. Em como pode alguém se tornar tão gigante sem quase nunca sair de casa... Como?... 

Vivia pra família. Cumpria com zelo suas obrigações. Fazia compras pra casa, buscando sempre as ofertas, conduzia a rotina com calma e constância. Acordava cedo para acompanhar a saída dos filhos para a escola ou o trabalho. Em casa, passava o dia a costurar, a adaptar e consertar roupas para os filhos e roupas de cama. Também pintava panos de prato, bordava nossas roupas e lençóis (as irmãs dela também, todas muito prendadas). Adorava ler, e escrevia também. Gostava de cantar e sua voz era linda e afinada. Era muito próxima de Deus - numa fé inabalável. Não tenho nenhum desses talentos... 

Demarcava a hora do almoço, merenda e jantar. Nos levava ao parque, se preciso, ao clube, à visitas aos parentes, passávamos longas temporadas juntos nas fazendas. Acompanhava se cumpriámos os deveres de casa, exigia que arrumássemos nossas camas diariamente e a casa aos fins de semana. Era enérgica, ao mesmo tempo muita serena. Às vezes ficava brava e nos batia - sempre no bumbum, dizia que bater no rosto fazia a pessoa perder o respeito, quer dizer, havia limites para o castigo rsrsrs 

Tinha sempre uma aura de otimismo e bom humor. Era engraçadinha, fazia trocadilhos, tiradas humoradas, um talento nato da família dela, todos têm. É essa herança que mais invejo não ter herdado, a de fazer outros rirem rsrsrs Uma majestade em seu pequeno reino.

Não ruminava raiva, nem mágoa, as coisas ruins esquecia depressa. Era amorosa sem abraços e beijos - em receptividade, em doação para a casa, para nós, para a sua família toda. Recebia primos, parentes, compadres, sobrinhos, amigos dos filhos. Em sua casa comiam 10 ou 20. Jamais nos disse para não convidar alguém. Casa aberta e hospitaleira. Fazia doces em tachos, biscoito ou pão de queijo, batia um sorvete, estourava uma pipoca, coava um chá e um café (mas só tomava chá, jamais café), sempre um queijo minas (já amassamos alguns juntas) e a mesa estava posta. Era discreta, não esticava nem aumentava conversas... 

Fico pensando em como uma pessoa caseira, reservada, alegre de pouca fala, sem grandes sonhos de mundo, tinha uma força tão grande. Seu nome ia à frente, levado pela educação dos filhos, pelo brilho deles na escola e no trabalho, pelas roupas bem feitas, pela casa aberta... 

Em Dores do Indaiá, onde nascemos, ela era a Maria do Emídio rsrsrs pois naquela terra era forasteira. Era dali pertinho, de Bom Despacho e Luz, mas ali ele era local, havia gerações - alegre, extrovertido, mandão, neto de italiano, falava alto ocupando todo o espaço onde chegava rsrsrs 

E exatamente nesse mesmo dia, na volta do trabalho para casa, tendo feito essas considerações pela manhã, li alguns comentários sábios da jornalista Sivan Rahav Meir sobre a parashá da semana (porção da Bíblia semanal, lida em todas as sinagogas do mundo). Diziam que toda mudança começa em casa, na vida privada, especialmente na mesa de refeição - num espaço simbólico entre a sala e a cozinha, em que se dá a vida social da família, onde a socialização com o outro se inicia e cria suas bases. 

E assim, começando o dia pela falta de minha mãe, caminhando pela sua influência em nossas vidas, em como essa estrela brilhante em sua pequena constelação familiar iluminava e influenciava tantos, passando pela volta à casa no fim do dia e pelos ensinamentos da parashá da semana no ônibus, cheguei ao ponto final - em casa, onde tudo começa e termina.

Sim, os atos rotineiros têm o poder imenso do exemplo vivo. Sim, as grandes mudanças se concretizam a partir de atos corriqueiros em seu próprio entorno.

Raquel Teles Yehezkel 

Israel, 2.2.2023

Meus pais com a família reunida