quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Portuguesit ou Portugalit, em hebraico?

Chegou até mim em 29.1.2015 um documento oficial da Academia de Língua Hebraica, versando sobre o emprego de "portuguesit" ou "portugalit", discussão que julgo muito importante, por isso compartilho com vocês, brasileiros, falantes da vertente brasileira do português em Israel, um artigo em que defendo continuarmos especificando a nossa língua como "portuguesit". E explico por quê.

A recomendação pelo termo "portugalit" para designar a língua que falamos é uma norma da Academia de Língua Hebraica, que, embora esteja baseada em estudos do comportamento da língua, é uma imposição de cima para baixo, da Academia para os falantes, baseada no uso formal da língua hebraica. No entanto, é sabido que nem sempre a recomendação se confirma na realidade em uso.
As normas são a tentativa de uma descrição da língua em uso e não o contrário. Elas são importantes para manter a unidade da língua oficial, documental, formal e a identidade de um país e de um povo. Têm suma importância. Mas a língua usada de forma coloquial e compreendida entre os falantes da mesma língua pode um dia vir ser a normativa por ser a forma dominante, usada pela maioria dos falantes daquela língua. Nesse caso, se a maioria dos falantes de hebraico optarem por falar "portuguesit", com o tempo a Academia vai abranger o termo mais usado e incluí-lo na forma normativa. É assim que funcionam as línguas, elas são vivas e mutantes.
Atualmente, grande parte dos israelenses, talvez a maioria, fala "portuguesit", e todos entendem e está bem assim. Daí a necessidade deste documento que a Academia publicou, com número e tudo mais. Se não estivéssemos na encruzilhada que divide o uso entre o "portuguesit" e o "portugalit" não teriam levantado tal discussão.
Assim sendo, partindo de pressupostos sobre o funcionamento da língua como defendido por Possenti (1996) e Bagno (1999), de que a língua a se tornar normativa é aquela falada pela maioria ou a língua dos interesses e do poder, faço a opção pelo termo "portuguesit", continuando a insistir em seu uso, para que com o tempo ele se firme e a Academia o incorpore. Como falante da vertente brasileira, não tenho interesse de que nossa língua seja literalmente a língua de Portugal = portugalit. Portuguesit também advém de Portugal, mas mantém uma distância maior, dando maior flexibilidade e legitimidade ao português do Brasil de ser como ele é, reforçando as nossas diferenças, mesmo sendo usuários da mesma língua.
Quando digo "portugalit" estou aceitando o português de Portugal como modelo primário. Essa é minha opinião, como amante da língua portuguesa. Nesta perspectiva, nós, brasileiros em Israel, podemos continuar a nomear nossa língua de "portuguesit" e não "portugalit". Com o tempo, a nossa vertente, nosso modo de falar, acabará sendo reconhecido pela Academia: o "portuguesit" do Brasil e não o "portugalit" do Brasil.

Raquel Teles Yehezkel
Texto publicado no FB em 29.1.2015

Citação do site da Academia de Língua Hebraica, acessado em 29.1.2020
על רקע זה התגבשה מסורת ארוכה של מתקני הלשון להמליץ על הצורה פורטוגלי, ועל דרך זו גם מלטי, בורמי, קונגואי, אנגולי ועוד. עם זאת, כאמור, ועדת הדקדוק של האקדמיה החליטה שלא להתערב בשאלת גזירתם של שמות הייחוס משמות של ארצות וערים בעולם. והרי יש בעברית מקרה אחד ותיק של יצירת תואר ייחוס משם של ארץ בתיווך לשון אירופית: איטלקית (מן היוונית – italikos)
Tradução: "Nesse contexto, uma longa tradição de normas linguísticas foi formulada para recomendar a forma em portugalit e, dessa maneira, também malti, birmani, congoí, angolani e outros. 
No entanto, como afirmado, a Comissão de Gramática da Academia decidiu não intervir na questão de derivações de nomes de países e cidades do mundo. Há, em hebraico, um antigo caso de criação de um adjetivo oriundo do nome de um país mediado por uma língua europeia: italikit (do grego - italikos).
Referências:
BAGNO, Marcos: "Preconceito Linguístico - o que é, como se faz". Edições Loyola, São Paulo, 1999.
POSSENTI, Sirio. "Por que (não) ensinar gramática na escola. São Paulo, Ática, 1996.
Site da Academia de Língua Hebraica acessado em 29.01.2020:





segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Entre-culturas: vivendo entre Brasil e Israel


 Conheci Nissim no meu aniversário de 22 anos. Ele também tinha 22. Estávamos na Bolívia, no caminho de Machu Pichu, em janeiro de 1983 - eu indo, ele voltando. Posso dizer que ao encontrá-lo, encontrei também minha outra casa, outra parte da minha vida. Desde então caminhamos juntos, buscando construir pontes entre nossas culturas.

Ele é de Israel, eu, de Dores do Indaiá, no interior de Minas, Brasil. Ao longo do caminho, muitas vezes, as diferenças culturais foram barreiras, outras, pontes. Tínhamos o background comum da geração nascida nos anos 60, recém-globalizada pela música, pela literatura e o cinema. A geração do rock pop e progressivo, do cinema experimento, da liberação sexual, da rebeldia dos filhos da classe média. Eu vinha de Beagá do Cine Pathé e da Sala Humberto Mauro, dos shows no Palácio das Artes, no Francisco Nunes e no DCE, da Fafich da UFMG, das turmas de rua e de colégios, dos grupos de músicos-amigos, da Alquimia e comidas naturais, de famílias do interior de Minas - há gerações conectadas à terra, às águas e ao firmamento, e irmãos proprietários de livrarias. Ele, recém-saído da Tzahal (Forças de Defesa de Israel), quatro anos no Modiyn (Serviço de Inteligência), serviu no Sinai e em Ramat Hasharon, de familias de imigrantes saídas sem nada do Iraque ao final da II Guerra, da primeira geração nascida na nova Terra de Israel, estudou no Netsah LeBanim (sim, chavash kipá / usava solidéu até os 14 anos), na prestigiosa High School Aamal de Petach Tikva e no Joseph College da Universidade de Tel Aviv, frequentou o Cine Paris e a hof (praia) Hatzuk de Tel Aviv, foi corredor de maratona, atravessava correndo os pardesim (pomares) de laranja, que ligavam Petah Tikva até o mar. Entendia - e entende ainda - tudo de música, de cinema, de literatura e esportes. Leu de Tolstoi e Bashevis Singer a Jorge Amado e Eli Amir. Me aplicou em Arik Einstein e na música israelense de todos os tempos e eu o apliquei no melhor da música popular brasileira.

Nessa travessia, nos construímos entre amor, rachaduras e frestas - através de Arik Einstein, Shmulik Kraus, Shalom Hanoch, Shlomo Artzi, Poliker,  Zohar, Ishay Levi, Bery Saharov, Amir Levi, Ehud e Meir Bannay, Caetano, Cazuza, Raul, Almodovar. Entre corridas e caminhadas, sempre lendo antes de dormir, acompanhando seriados e cinema, ouvimos juntos tudo de Dire Straits, Eric Clapton, Neil Young, Peter Green, Leonardo Cohen, Joe Coker, Tom Waits, Rob Robertson, The Band, Bob Dylan. Fundamos juntos a Editora Leitura de Belo Horizonte.

Eu tinha uma atração e simpatia pela história e cultura do país dele, ele, pelo meu. De tudo, talvez o que mais nos tenha conectado desde e sempre tenha sido a forma de viver de nossas famílias. Ambos viemos de casas muito calorosas, com irmãos unidos que se importam muito uns com os outros e pais dedicados à família, tios, primos e sobrinhos muito próximos. Fui abraçada pela família dele e ele se adaptou à minha com facilidade - apesar de manter sempre a reserva intrínseca à sua personalidade. Aos poucos ele se tornou um israelense meio brasileiro, e eu, uma brasileira bem israelense.

Cheguei a Israel ao completar 23 anos, em Pessach (Páscoa judaica), em abril de 1984, no 36* aniversário desse país. Dos costumes religiosos não entendia nada, mas logo me adaptei. Já vinha ligada ao país pela literatura e o cinema, e também pela história que nos unia desde a Inquisição e a formação do Brasil, carregando os sobrenomes Cardoso, Oliveira, Pinto, Campos e Carvalho dos meus avós, cristãos-novos no interior do Brasil. Na terra da minha mãe, em Bom Despacho, diziam que os Cardoso casavam entre si, não se misturavam, casando ela mesma dessa forma, com meu pai, Teles Carvalho, parentes com ancestrais comuns em Luz.

E nessa longa cadeia, nas voltas que a vida dá, abracei o judaísmo e dediquei boa parte da minha vida ao aprendizado e à aproximação dessas duas culturas, que, apesar de tão diferentes, são ricas, informais, criativas, calorosas e múltiplas. No Brasil, tinha que explicar Israel; em Israel, explicar o Brasil. Estudei Letras, História, participei do Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG, fui editora, escrevi e adaptei livros por 15 anos e, depois, diretora do Centro Cultural Brasileiro em Tel Aviv por mais uns tantos. Entre um lugar e o outro, criamos três filhos que se amam, e bem diferentes entre si, Elias /Elyahu, Ariel e Alon: um rabino, um empresário e um artista.

Entre descidas e subidas, reconheço que absorver amplamente língua e cultura implica transformação e dor, pois nunca mais nos encontramos totalmente nem em uma, nem em outra.
Entre-culturas.

Raquel Teles Yehezkel
Setembro de 2019

Israel, Kibutz Hatzor, junho 1984

 Com os filhos em BH e em Jerusalém

com os netos em 2019

sábado, 11 de janeiro de 2020

Cenas de Família e a Construção de Enredos

"O hoje é apenas um furo no futuro, por onde o passado começa a jorrar." Os versos de Raul Seixas me remeteram à matéria que li sobre a publicação de "Não Pai", de Daniel Blaufuks, sobre memória, Holocausto e um pai ausente, e ao programa de Kobi Meydan, "Sochen Tarbut / Agente de Cultura, que assisti em 10/1/20, no Canal 11, em Israel. Mãe e filha, ambas já de cabelos brancos, buscam um novo caminho em suas relações através da escritura de um livro à duas mãos: "Ech Saradti at Imi/ Como Sobrevivi à minha Mãe", de Martha e Dana Ramon. A mãe, Martha Ramon, é uma das fundadoras da importante organização "Enosh / Humano", reconhecida em Israel pelo trabalho de apoio a pessoas e a familias de portadores de doenças mentais. A filha, Dana Ramon, mora atualmente numa pequena cidade no sul da França. O livro trata do relacionamento interrompido e truncado entre as duas, e sua publicação é uma espécie de elaboração conjunta onde elas procuram se reencontrar e se perdoarem. O livro tem como base as cartas da filha para a mãe, desde a adolescência até a fase adulta, e as respostas às perguntas de então são buscadas agora, numa tentativa de entender a relação dolorosa. No programa, foi lido do livro uma frase da mãe, algo como, fui mãe do primeiro filho aos 25, da filha aos 28, me separei aos 36, minha filha deixou a casa quando eu tinha 40 e meu filho se suicidou quando eu tinha 46. Contou também que descobriu que o filho era esquizofrênico - doença mental considerada crônica - quando ele tinha 19 anos. A filha, que se sentia invisível para a mãe, cuja atenção estava focada nos problemas do filho, saiu de casa aos 12 anos e foi morar com o pai - que àquela altura estava em novo casamento, com um bebê recém-nascido -, onde também não encontrou seu lugar. Foi então transferida, pela assistência social, para um kibutz onde, naquele tempo, as crianças viviam de forma comunitária, em casa separada dos pais.

Tanto Daniel Blaufuks, que não teve oportunidade de refazer a relação com o pai, pela tamanha distância que os separava - só ficou sabendo da morte dele um mês depois -, quanto Dana Ramon, buscam, no presente, digerir o passado através da escrita. Me lembrei de Clarice Lispector, que afirmou que a escrita é uma forma de ludibriar a loucura, de buscar uma certa coerência no viver.

Caminhando ao longo do rio Yarkon, sob o sol após uma semana de chuvas intensas, testemunhei um cena que me tocou e me fez conectar de forma positiva com o que vinha remoendo desde que me deparei com as histórias de Daniel e de Dana. Um ciclista bem-equipado, com mais de 60 anos, na pista à minha frente, dirigindo com o celular na mão, fotografava uma jovem na casa dos 20, que vinha sorrindo na direção oposta a ele e a mim. Vi essa cena de carinho, e, logo a seguir, vi-o fotografar uma mulher mais velha, menos habituada à bicicleta, mas também sorridente. Testemunhei naquele momento, como um voyeur furtivo e esperançoso, a construção de um retrato de família que, imediatamente, me remeteu às possibilidades de reconstituição das histórias de Dana e de Daniel. A  construção de um enredo familiar, nesse caso em fotografias, em uma manhã linda de janeiro, no início da década de 2020: a família reunida numa atividade nada habitual, no parque Yarkon em Tel Aviv, Israel, a apenas poucos quilômetros dos bombardeios entre o Irã e os Estados Unidos, no Iraque, próximos à Síria, a alguns milhares quilômetros de Wuhan - eis aí uma parte da história se constituindo...

Por Raquel Teles Yehezkel
Israel 11.1.2020




Fontes acessadas em 11.1.2020:

https://carmelph.co.il/book/surviving-my-mother/

https://observador.pt/2020/01/09/memoria-holocausto-e-um-pai-ausente-daniel-blaufuks-escreveu-um-livro-que-e-um-mergulho-na-intimidade/

https://www.kan.org.il/program/?catid=1229