quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Crônica de Natal

O Natal são dias sensíveis. 

Sempre foram. 

Sensibilidade contida, 

de espera, frio na barriga, 

confiança 

de que a vida vai ser melhor. 


São dias de alegria diferente, 

mais contrita. 

Muitos preparativos. 

Grandes expectativas 

ao reunir toda a família. 

Esperar que cada um chegue.

Para que a alegria seja plena. 

Haja coração.

Tempo de espera...


Uma festa para a qual mamãe ia guardando tudo o que havia de melhor. 

Toalhas de mesa, cobre-leitos, toalhas de banho, a melhor louça.

Castanhas, frutas, pernil, peru 

- quando em Dores do Indaiá, criava um peru de verdade, e guardava a parreira de uvas e um pé inteiro de jabuticas intocáveis só para aqueles que chegariam.

Tudo para reunir a família. 

Completa - a princípio. 

E o esforço para se reunir era total. 

Uma festa que mamãe nunca deixou de comemorar. 

Mesmo nos momentos mais difíceis.

Com grandeza de tudo, 

de fartura, de pessoas, 

de enfeites, de alegria. 

Em seu presépio, 

vivo,

a familia reunida à volta

aconchegada.

Tempo de promessas.


Assim era o costume na casa dela, 

e assim ela continuou na nossa casa. 

Uma confraternização genuína,  

de riso solto, 

gestos largos, 

e abraços estreitos.

Tempo de colheitas...


Quando éramos pequenos e muitos, 

e a vida apertava para meu pai, 

eles faziam todo o esforço possível 

e nunca faltavam os presentes 

simples 

que achávamos perfeitos: 

panelinhas, jogos de chá, bonecas, 

jogos de caixa, baralho, livros, gaitas, bolas,

cada um recebia os seus no sapatinho deixado ao lado da cama.

Tempo de sonhos...


No ano passado, 

ela já não pôde participar,

mas ainda estava lá, 

filhos e netos,

eu também - sempre presente,

mesmo distante.

Este ano, faltou a peça principal,

faltou ela.

Mas lá estava a família, 

tentando se reorganizar,

para honrar a sua majestosa presença. 


- A bênção, mamãe; a bênção, papai.

- Dormem com Deus.

Tempo de descanso...






Feliz Natal, meus irmãos!





segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Amor em fartura

Pensando na neta delicada que acaba de nascer, nos netinhos e sobrinhos-netos cheios de vida, na mamãe acamada há tantos anos e ainda agregando amor em torno dela numa família tão calorosa e especial, em meus filhos tão diferentes um do outro e tão bons e amorosos, em meu casamento longo e estável, mais por causa das mesmas crenças no que é importante do que pelas diferenças ao longo do caminho, no ambiente de trabalho criativo e saudável que tanto combina comigo, nos amigos tão presentes e nos irmãos e familiares que me proporcionam amor em fartura e gratuito por todo o caminho, tenho pensado muito, tenho estado muito sensível e muito muito grata à vida por ter me dado tanto tanto.

Raquel Teles Yehezkel 

Belo Horizonte

19.1.2019



quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Rosh Hashana

Mesa posta, noite de Rosh Hashaná. Antes do jantar, faz-se as bênçãos para o Ano Novo. 

Primeira vez que comemoramos em nossa casa, com a família reduzida. Novo lockdown, pela segunda onda do coronavírus, começou na noite do chag /feriado e vai até após Sukot/ Tabernáculos, englobando também Yom Kipur / Dia do Perdão. 

Todos os anos comemoramos na casa dos meus sogros, com meu sogro conduzindo as bênçãos. Diferente, e também triste, que não possamos reunir a grande família à  mesa... Enfim... 

O que tem à mesa nesta noite tão especial? Mel e maçã para que o ano seja doce como mel. Romã, para que nossa vida tenha abundância como os grãos da romã; uma fruta que ainda não comemos nesta estação (coloquei tâmaras e mexirica, pois tâmaras eu já havia comido, não resisti kkk) para fazermos a benção do Shehiyanu, benção que se deve fazer em cada momento da vida em que se tem o privilégio de vivenciar algo pela primeira vez. Tem também folhas verdes amargas, que cortamos sobre a cabeça, pedindo ao Eterno para expulsar os inimigos de nossa vida. Tem vagens com grãos múltiplos, simbolizando a prosperidade, o sustento no dia a dia. E deve ter a cabeça de um peixe ou um peixe inteiro (colocamos um osso como símbolo, já que não fizemos peixe com cabeça - filé não adianta) para que possamos pedir a benção de que sejamos, neste ano, a Cabeça e não o rabo, que estejamos na liderança de nossa própria vida. 

Antes, claro, faz-se a traditional benção do pão e do vinho que se faz toda sexta de noite na entrada do Sábado / Shabat. O chefe da familia conduz as bençãos, lendo-as no livreto, e todos as repetem. Este ano, meu marido conduziu as bênçãos: Sheyhianu ve kiymanu ve higuianu...

Israel, setembro de 2020

Raquel Teles Yehezkel 



Cartão Vermelho

Almejo um cartão vermelho poderoso,

capaz de expulsar o corona do mundo.

Pra sempre.

De vez!

Tempos difíceis.

Estranhos. 

Lockdown completo.

Outra vez.

Não há melhoras -

só falsas impressões.

De repente, tudo de novo...

Mais intenso e real.

Pára o mundo que quero descer...

Ou me acorde quando o pesadelo passar.

Não fosse a esperança...

Ah, essa esperança...

Pequena chama da vida

que assopra e bate...

Aperta e relaxa...

Tristeza e dor à espreita...

Haja coração.

Haja oração.

Haja fé.

Haja vida na vida!

Bendito seja o Senhor do Universo,

que ergue os tombados, 

que cura os enfermos...

Ah, essa esperança...


Raquel Teles Yehezkel

Israel, 1.10.2020



sábado, 19 de setembro de 2020

Minas e sua gente

Isso existe? 

Minas é formada por centenas de ecossistemas fechados em si mesmos, por entre serras e montes. 

Às vezes se pode pensar que a tão cantada hospitalidade mineira seja lenda... 

Guardo em mim algumas cenas do estilo de vida camarada e sem pressa dessa gente.

De uma casa que fica em algum lugar entre Moeda e Noiva do Cordeiro... 

Não sei precisar onde, pois nunca havia passado por essa sinuosa estrada de terra quando ali estive em passeio. 

Minha prima disse que no caminho vendiam-se mudas de plantas. Paramos. Esta família não nos esperava. 

Estavam na cozinha, marido e mulher, fritando uns bolinhos doces para a hora da merenda... Tudo com muito capricho.

Nos convidaram para nos sentar com eles à mesa, antes mesmo de vermos as mudas. 

Não os conhecíamos, não me lembro mais de seus nomes...

Mas a acolhida desta gente simples, guardo a sete chaves do lado esquerdo do peito...














sábado, 30 de maio de 2020

Tajabone atinge a alma

"Tajabone", do senegalês Ismael Lo, atinge minha alma de forma devastadora. Não conhecia o significado de sua letra, mas para mim tratava-se de dor, de amor, de solidariedade. Um pouco tristeza, um pouco esperança.

Ouvi-a pela primeira vez no filme do Almodovar, "Tudo sobre minha mãe", em 1999 - foi como receber uma bordoada, tomou conta de meu corpo e sentimentos. De outra vez, chegou a mim pelo rádio como uma bênção, a caminho de um Shabat em Jerusalém, na casa de minha amiga Lucia Barnea. E me voltou, desta vez, depois de muito tempo, através do meu marido, que ouviu-a na Galgalatz e, num gesto de carinho, tirou-a para mim na gaita.

Curiosa, busquei, de novo, o significado das palavras misteriosas, e dessa vez encontrei a tradução em espanhol.

Tajabone
é um anjo que vem dos céus
à sua alma,
e ele te perguntará se já rezou
e ele te perguntará se já jejuou...

Me emociono e estremeço sempre que a ouço. Compartilho esse sentimento, esse estado de espírito, nessa véspera de um Shabat bem diferente, de isolamento social e reflexão para todo o mundo em época de corona.

Que tenhamos todos saúde e um Shabat Shalom - de paz.

Israel, 20.3.2020

Nissim e Raquel (cover):
https://youtu.be/IfV3owVNPUU

Ismael Lo (original):
https://youtu.be/ykW-ExaYklc





quarta-feira, 27 de maio de 2020

Igal Bashan - Um passarinho no coração

Às vezes você chora, às vezes você ri
Derrama uma lágrima, porque é hora de partir.
Todo amor tem um fim para o começo;
E, sem dizer uma palavra, 

nos despedimos sem nos ver...
פעם את בוכה, ופעם את צוחקת
מזילה דמעה, כי זה הזמן ללכת
לכל האהבות יש סוף להתחלה
נפרדים רק במבט, בלי לומר מילה
עוד סיפור אחד של אהבה
לפני שסוגרים את האורות
Yahala, Igal, vamos...
mais uma história de amor, 
antes que as luzes se apaguem!
Pois antes que se apagasse a última luz de Hanuca,
você nos deixou, assim de repente.

אם תזכרי אותי סיון
האם תקדישי לי קצת זמן
עכשיו כשאת הרחק מכאן
השארת תמונה עם חיוך במסגרת
האם נשארתי גם אצלך
Sim, Igal, nos lembraremos de você - Sivan e eu.
Agora que você está longe daqui...
Nos resta seu sorriso emoldurado numa foto.
Nos lembraremos, sim, de você,
Pois seu talento deixou marcas permanentes.

Pois muito bem você cantou:
כמו צועני מסתובב לי בעולם
והעולם כולו ביתי
כמו צועני מסתובב לי בעולם
והשירים בנשמתי
לה, לה, לה…
Como ciganos rodamos pelo mundo,
E o mundo todo é a nossa casa.
Como ciganos rodaremos pelo mundo,
levando suas canções inscritas em nossas almas.

Cantou o amor pelos pequenos deuses das coisas:
יש לי ציפור קטנה בלב
והיא עושה בי מנגינות
של סתיו ושל אביב חולף
של אלף אהבות קטנות
Tenho um pequeno pássaro no coração,
E ele toca em mim uma canção
De outono e primavera que passam,
De mil amores pequeninos.

E também a esperança em Deus maior que todos:
וכמו שכתוב כאן יהיה פעם טוב
מתי הוא יגיע? יש אומרים אולי עוד מחר
מתי הוא ישמיע את קולו ואז יאמר טוב
אז הרקיע שוב יאיר ופרח יפרח
שנרגיש כי טוב כל כך
Como está escrito, aqui um dia será bom
Mas, quando? Alguns dizem que talvez amanhã.
Quando ouviremos Sua voz a dizer: “Seja bom!”
E então o firmamento novamente se fará luz e a flor florescerá
E sentiremos que tudo é tão bom...

Mas quero me lembrar de você
também através das crianças que te amaram,
da geração dos meus filhos,
que cantou e dançou o Opa Hei com você:
הופה הופה הופה הופה היי
שיר איתנו את ההופה הופה היי
כשאתה עצוב כל כך
צא לדרך אל תשכח
שיר איתנו את ההופה הופה היי
Opa, opa, opa, opa, hei
Cante com a gente o opa, opa, opa hei.
Quando você estiver muito triste,
Saia pelo caminho e não se esqueça,

De cantar comigo o seu opa, hei!

Yahala, eterno menino, 
nos encontraremos sempre no café positivo da Berta,
Com café preto à mesa posta por Deus,
שגלגל חדש
יתחיל כשהשנה תצא
Pois todo novo ciclo começa quando o ano se vai...

Yagal Bashan,
יהי זכרונו ברוך
Seja sua memória abençoada,
hoje e sempre.


9.12.2018
Raquel Teles Yehezel
Um diálogo com as letras do compositor

Igal Bashan e sua companheira por toda a vida, Mika Bashan

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Entre livros preciosos

Colocando em ordem as estantes de casa, encontrei alguns livros dos quais tenho orgulho de ser a editora e de ter acompanhado a edição do início ao fim.

Um deles, "Lúlek - a história do menino que saiu do campo de concentração para se tornar o grão-rabino de Israel", do Rabino Israel Meir Lau, foi traduzido para o português pela professora Nancy Rozenchan, da USP.

"100 Discursos históricos brasileiros" foi organizado por Carlos Figueiredo, ex-assessor do governador Franco Montoro - tempos de sonhos de um Brasil mais justo, uma coleção com os melhores discursos já proferidos pelos brasileiros. Este livro, o autor, Nissim e eu o entregamos em mãos, no Palácio do Planalto, ao então presidente Fernando Henrique Cardoso. Estava entre os livros mais vendidos de nossa editora e entrou para a lista dos mais vendidos no Brasil.

"Colocando o português em dia - gramática interativa", do lendário professor Helinho, de Belo Horizonte, me ajudou a revisar e atualizar as novas edições da editora, conforme o acordo ortográfico firmado pelo Brasil em 2008.

E "Meu Israel - viagem ao país onde o céu e a terra se encontram", primeiro livro da jornalista Sabrina Abreu, é o livro do meu coração, pois, na diversidade do povo dessa terra, bem mostrada nesse livro, encontrei minha segunda casa. No capítulo sobre as tradições judaicas, há fotos do Nissim criança em Hanuca, do nosso casamento, dos bar-mitzvot dos nossos filhos e do brit-milá do caçula.

Enfim, dentro das centenas de livros que editei pela Editora Leitura de Belo Horizonte, esses são preciosidades para mim. Sem contar edições primorosas, como "Um rubi no umbigo" de Ferreira Gular, "O mulo" de Darcy Ribeiro, "O Matador" de Wander Pirolli - prêmio Jabuti 62 pelas ilustrações de Odilon Moraes, "Alegria, Alegria" de Carlos Felipe - coletânea de músicas infantis do folclore brasileiro, crônicas de Marina Colasanti, de Miguel Sanches Neto, de Carlos Herculano, do inesquecível Alcione Araújo, entre muitos outros títulos importantes.

Gracias a la vida, que me ha dado tanto... 🙏

Raquel Teles Yehezkel
Israel 21.5.2020




 




segunda-feira, 18 de maio de 2020

Uma bicicleta no meio do caminho

Costumo ir para o trabalho de bicicleta. De Petah Tikva a Tel Aviv, via Parque Yarkon. Às vezes de elétrica, outras, menos, de bike normal. Uma hora de percalços. Naquela manhã, ia de elétrica. Entrando no Parque Yarkon, a corrente da bicicleta prendeu e travou a roda traseira. Depois de ficar com as mãos pretinhas de óleo da corrente recentemente lubrificada, não consegui consertá-la, e a roda continuou travada. Nesse mexe-mexe, a cesta que fica na traseira da bike se soltou e caiu. Tive que deixá-la escondida no mato, para pegar na volta... Coloquei a mochila nas costas, com a matula para o dia inteiro dentro, e fui empurrando a bike em cima da roda dianteira apenas: peso, calor, suor... E eu estava toda chiquezinha, animada para o início da semana, com volta à normalidade após sessenta dias de isolamento pelo coronavírus.

Decidi ligar para um amigo que mora perto do parque, para deixar a bike na casa dele e pegar, de carro, à noite... Nesse momento, vi que havia esquecido o celular em casa! Pare o mundo que eu quero descer, pensei - rsrsrs. Então resolvi largar a bicicleta no parque, sem cadeado, levando a bateria comigo e ir procurar uma linha de ônibus nas imediações - snif, snif... (não tinha celular para colocar emojis de choro -rsrsrs).

Daí caiu do céu uma alma boa... (mãozinhas postas, agradecendo a Deus). Um rapaz (argentino que reconheceu meu sotaque brasileiro rsrsrs) que estava com a esposa, religiosos, me ofereceu ajuda. No final, conseguiu soltar a corrente e eu pude chegar até o trabalho.

Chegando ao Centro Cultural Brasileiro, o ar-condicionado não funcionava! Estávamos naqueles dias de calor insuportável em que sopra o vento sul do deserto (mais snif, snif, choro, rsrsrs). Sem celular, a bike por arrumar, sem ar-condicionado, naquele calor! Troquei a bateria do controle remoto e nada. Respirei fundo, retirei as pilhas novas, limpei resquícios da anterior... e nada. Pensei: melhor manter a calma. Antes de solicitar visita técnica, um longo processo burocrático, decidi "pedir ajuda aos universitários" - rsrsrs.

Acessei o whatsapp no meu computador do trabalho, rezando para ele não me pedir bar-code para conectar, pois, nesse caso, precisaria do celular, e isso acontece de vez em quando... Ok, deu certo.

Mandei uma mensagem para o Yossi. O tsadik Yossi Sterenberg, eletricista faz-tudo, nosso vizinho na região, perguntando se ele estava por perto. Passou quase nada, e ele apareceu à porta de patinete elétrica (mais uns emojis de mãos postas em agradecimento); subiu na escada e ligou manualmente os comandos que ficam num aparelhinho perto do teto, referente ao ar-condicionado central. Tudo voltou a funcionar! Pode ser que tenha caído a eletricidade no fim de semana, disse o Yossi, e o comando tenha se desconectado...

Então o Yossi falou: Rachel, você tem que quebrar três ovos, um para cada problema... Eu disse, eu não tenho ovos. Pronto, dei por finalizado o assunto. Mil agradecimentos. Ele insistiu, você tem que quebrar alguma coisa... Eu nem ligando... Ainda na porta, ele disse, Rachel, quebra um lápis...

Insistiu tanto que, depois que ele se foi, lá fui eu quebrar um lápis em capara por todos os desacertos da manhã -rsrsrs. Talvez Yossi tivesse razão... Melhor não arriscar...

Olhei para o relógio e eram 9h40 da manhã de segunda, 18 de maio de 2020. Estava pronta para começar o novo dia. Faltava apenas o café... E, na hora do almoço, dar um pulinho na loja para revisar a bicicleta antes de voltar para casa (risos, mãos postas, flores para o moço do parque e para o Yossi!)

Tel Aviv 18.5.2020

Parque Yarkon

sábado, 16 de maio de 2020

Bituca e o Clube da Esquina

Falar de Milton e do Clube da Esquina
é falar de Minas,
de BH, do interior do Brasil,
de amizade, da natureza.
É falar de meus amigos e de mim.
De sonhos que não envelhecem,
que têm a cor de vestidos
e de girassóis da cor de cabelos...
De soltar a voz e os pés nas estradas,
por caminhos de ferros
que se mandou acarrancar,
e ver tios na varanda, com o coração lá...
E ainda assim já não querer parar,
pois, caçador de mim, eu sou.
Sim, qualquer dia a gente se vê...
Que notícias me dão dos amigos,
que notícias me dão de você...
Alvoroço em meu coração,
amanhã e depois de amanhã,
pois que nada será como antes,
amanhã...

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Israel 11.4.2020
Ouvindo Bituca em tempos de coronavírus

Clube da Esquina em Santa Tereza, BH.



quinta-feira, 14 de maio de 2020

Hoje eu recebi uma carta

Hoje eu recebi uma carta.
Uma carta de amor. 
Uma carta bordada, em letras, cores, desenhos e história.
Recheada de leveza, afeto e lembranças.

Nos conhecemos no ulpan do kibutz Hatzor, na Primavera de 1984.
Naomi era uma menina diferente.
Aberta, delicada, amorosa, engraçada, avoada.
Daí vinha sua leveza.
Para ela, tudo era bom.
Dividimos amigos, risos fáceis, abraços, passeios,
aprendizado de vida, de língua e cultura.

Após o ulpan no kibutz, partimos para conquistar Tel Aviv.
Ela foi morar em Jaffa e eu, com Nissim,
num apartamento de um cômodo,
no andar térreo da Dizingof 24.
Após esse ano, ela voltou para os Estados Unidos.
Eu me casei e fomos para o Brasil.

Durante décadas, nos correspondemos por cartas.
Cada carta dela era uma obra de arte.
Tinham cores, rendas, desenhos, pinturas, colagens.
Fiz um fichário só de cartas dela.
Eu também rabiscava umas florzinhas, árvores, sol e nuvens... rsrsrs
Eram cartas que firmavam nosso compromisso de amizade eterna.

A última vez que nos vimos foi em 1996. 
Ela veio me visitar em Israel.
No nascimento do meu filho caçula
e na brit dele, ela estava comigo.
Daí surgiu a internet e depois as redes sociais
e aprendemos a nos conectar de outras formas,
acompanhando sempre uma a outra, à distância.
Ela se casou e teve duas filhas lindas.

Mais anos se passaram,
e nesses tempos de covid,
nos fechamos em nossas casas.
E nesse isolamento, a filha dela,
artista como ela,
começou a desenvolver adesivos, papéis, envelopes e fontes para cartas...
Não sabia que estava desenhando
a mãe e a amiga da mãe...
Quem diria...
Hoje eu recebi uma carta.
Uma carta de amor

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14.5.2020
Para Naomi, com carinho 🌷









domingo, 10 de maio de 2020

Maria, Maria

Ela é luz e amor. 
A pessoa mais maravilhosa que conheci, 
pois ela é A minha mãe. 
Aos 97 anos, 
há seis, está em cadeira de rodas e de cama. 
Já não fala, nem se movimenta, 
ainda assim é risonha e alegre na maioria do tempo.
Estar rodeada pela família é sua maior alegria. 
Vê-se em seu rosto. 
Gosta também que cantemos pra ela 
as canções que cantava pra gente. 
O otimismo, a hospitalidade, a conformidade 
com o que lhe coube na vida 
e a fé em Deus são suas marcas. 
Era bordadeira e costureira de mão cheia, 
seus filhos andavam sempre bem cuidados. 
Formada no magistério, era muito exigente com a gente; 
tínhamos que brilhar na escola. 
Não sabia se expressar em carinhos físicos, 
mas era carinhosa em cuidados. 
Costurava, fazia todos os tipos de doces em tachos e deliciosas quitandas;
contava histórias e cantava pra gente; 
viajava conosco pra Patos, Dores e para a fazenda,
nos acompanhava em médicos, 
nos obrigava ir à missa no fim de semana, 
a ter obrigações fixas dentro de casa. 
Aos domingos, nos levava ao Parque Municipal ou ao Minas Tênis. 
Nunca usava calças compridas ou roupas sem mangas. 
Já avó de muitos netos, quando veio me visitar em Israel, em 1995, 
estava muito frio, e eu comprei duas calças para ela. Como aqui ninguém a conhecia, se encheu de coragem e, 
aos 72 anos, vestiu suas primeiras calças compridas, e nunca mais as deixou. 
Apesar de enérgica na lida com os filhos, 
teve sempre a personalidade calma e mansa. 
Um anjo em nossas vidas. 
Nosso esteio, a base de onde pudemos alçar nossos voos seguros, 
com a certeza de que ela estaria sempre em casa, firme e forte. 
E continua assim, em sua majestade, 
ainda que muito frágil. 
Já não reconhece quem é quem, mas tem lampejos de lucidez 
e a certeza de que aqueles que a cercam são todos sua família. 
Seu exemplo de vida é imensurável. 
E quem a conhece, sabe que não é exagero. 
Possa a mãe e avó zelosa, cumpridora de seus deveres, 
ser amparada com amor e carinho, hoje e sempre. 

Israel 01.03.2020
Para minha mãe, 
Maria da Conceição de Oliveira Teles, 
em seus 97 anos



                                    Com Raquel

Com a bisneta - minha neta Sara
  

terça-feira, 28 de abril de 2020

Em memória de Dani Barzellai

Dani era israelense e brasileiro, nascido no Rio de Janeiro em 5 de fevereiro de 1964, o caçula de uma família de 11 irmãos, todos nascidos no Rio, inclusive sua mãe, dona Raquel. Ainda menino, mudou-se com a família para Israel e foram morar em Bror Chail, um kibutz ao sul de Israel fundado por pioneiros egípcios, tendo recebido em seguida muitos brasileiros. O pai faleceu antes do Bar Mitzva de Dani. A grande família, sempre cercada por amigos e familiares, gostava de festas e costumava comemorar as festividades judaicas. Não demorou muito para que as festas da familia aliadas à alegria da cultura brasileira transformassem pequenos eventos de finais de semanas em festas regadas a samba e batucada, onde amigos chegavam com novos amigos.

Foi assim que o irmão Salva, Salvador, chegou com o amigo e radialista Eli Israeli, que trouxe, dentre outros, Arik Einstein, a maior figura da música israelense, e Mati Caspi, que difundiu a música brasileira em Israel, para o terreiro da família Barzellai no Kibutz Bror Chail. Aí se iniciava toda a tradição da música brasileira nesse Kibutz, e Dani era parte integrante da batucada, tendo, inclusive, trabalhado nos palcos de Mati Caspi.

Dani gostava das tradições judaicas e estudou em yeshivá (escola religiosa) por um período; sabia de cor todas as rezas e canções tradicionais e era shomer mitsvot (guardava os mandamentos). 

Sobressaiu-se no Exército como soldado da unidade de combate Golany, uma das mais prestigiadas no país, onde se formou Oficial das Forças de Defesa de Israel. Conforme depoimento de seus comandantes e colegas, era sempre o primeiro voluntário para as missões que deviam cumprir. Participou como combatente golany na Guerra do Líbano e na Intifada. Depois, serviu miluim (período de serviço militar anual) até o ano de 1989.

Entre agosto e setembro de 1989, quando convocado para o serviço militar anual, na região de Bikat Hayarden, foi feliz da vida, achando que iam ser dias de férias com os antigos colegas de armas, pois era uma região considerada tranquila, fronteira com a Jordânia, no nordeste do país. Mas aqueles eram períodos de Intifadas, e, nesses dias que Dani imaginou tranquilos, recebeu aí o chamado de Deus, tendo sido atingido após o grupo de guarda sofrer um ataque a tiros nessa fronteira... Depois de uma perseguição ao atirador, que veio da Jordânia, morreram ele e seu amigo Rony Hanuka, z"l. Conforme depoimento de outro membro do grupo, Dani partiu imediatamente, sem sofrimento, num Shabat, em 2 de setembro de 1989...

Dani, que amava crianças, deixou à sobrinha o seu nome, guardando a sua memória na família.

Daniel era filho de Raquel z"l e Emilio Barzellai z"l, e irmão do Salva, Jaime, Carlinhos, Rebeca, Ester, Sarinha, Miri Z"l, Elisa, Mori e de minha amiga Debi Barzellai, que na manhã de Yom HaZikaron de 2020 (Dia da Memória dos soldados tombados nas guerras e das vítimas do terrorismo), me enviou um vídeo emocionante, que contava toda esta história.

Dani Barzellai
יהי זכרו ברוך לעולם ועד

Texto de Raquel Teles Yehezkel
Para Debi Barzellai com carinho
Yom HaZikaron, 28.4.2020
~~~~~~~~~~
"Danny 02", de Peter Sela, produzido por Hila Barel, acessado no YouTube em 28.4.2020

https://www.izkor.gov.il/fallen/en_ac2f6a7caa2758ce02db930fe4ea305f

Fotos de jornais israelenses da época







domingo, 5 de abril de 2020

Em tempos de corona

Demorou, mas a ficha caiu. Custei a entender o que os especialistas vinham tentando nos explicar: a vida não vai voltar ao normal; tão cedo não voltaremos à rotina que tínhamos antes da pandemia, demorando bem mais do que podíamos imaginar. A covid 19 veio para ficar, e vai continuar atacando, às vezes fraca, outras, de forma letal, até que surja uma vacina eficiente ou quando, finalmente, a maioria da população estiver imunizada através do contágio. Fora isso, nos resta tentar manter o controle através de números e gráfico achatados, no país e no mundo inteiro. Até lá, vamos continuar o isolamento social, ainda que de forma mais relaxada: redução de pessoas em locais de trabalho, transportes públicos, eventos sociais. Enquanto, também, vamos continuar combatendo com restrições mais severas focos regionais, onde os números são mais altos, na tentativa de mantê-los dentro de limites que permitam uma rotina produtiva, até que descubram uma vacina eficiente.

Em Israel, estamos na quarta semana de isolamento; a curva já achatou, e, à princípio, a epidemia está sob controle. Assim, pretende-se começar a liberação do isolamento, gradativamente, após a semana de Pessach (a Páscoa judaica), que termina em 18 de abril. Mas estamos longe, o mundo todo, de voltar à normalidade.

Parece que teremos de começar a pensar em novas estratégias para a vida, novas formas de manter nossas necessidades, atividades e negócios. E mudar implica em saída da zona de conforto: movimento, adaptações, inovações, agilidade, perdas e ganhos. Mudança total no tabuleiro da vida...

Marcus meu irmão me disse que essa é um previsão pessimista. Do Brasil, me gravou um áudio falando tudo o que eu havia dito acima, mas de maneira mais pragmática, como é seu modo de ser. Preocupado, disse para eu não ficar pessimista, que ele garante que a partir de julho, agosto, ainda que gradativamente, vamos voltar à normalidade.

Achei graça no "te garanto", mas quando Marcus afirma alguma coisa, eu confio nele, com segurança. Ele tem a lógica matemática dos gênios e a capacidade de ouvir dos justos. Uma receita para poucos, pois é capaz de enxergar, de ouvir e de mudar. Marcus é o caçula de casa e o presidente daquela que deve ser a maior cadeia de livrarias do Brasil. E isso diz muito dele. Quando muitos estão a caminho da recessão, ele lidera com calma, passo a passo, com segurança, sem atropelar, com simplicidade, paciência e ouvidos. De sua gerência democraticamente partilhada com seu board, entre funcionários e seus familiares, mais de duas mil pessoas dependem diretamente dessa gerência.

E ele vem acompanhando de perto nossa experiência em Israel. Pediu-me para lhe passar as medidas de contenção adotadas aqui, pois estamos à frente de muitos países, acompanha nossos números e quer saber quais serão as regras para a volta gradual à vida econômica do país

Marcus, meu irmão, me disse para eu não ficar triste, que minha previsão é pessimista. Que ele me garante que do fim de julho em diante o mundo estará voltando, aos poucos, à normalidade. Ainda que um pouco diferente... E eu confio no Marcus.

Israel, Pessach 2020

Tel Aviv, foto ilustrativa

sexta-feira, 13 de março de 2020

Eu e você, você e eu

Eu e você, você e eu,
amigas pra valer você e eu...
Cruzeirenses desde e sempre,
na adolescência, íamos ao Mineirão
às quartas e domingos, ver o Cruzeiro jogar
com quem quer que fosse... rsrsrs
Ficávamos nas cadeiras cativas,
com minha prima e o mamorado dela.
Éramos vizinhas de porta, 
no  andar do Edifício Moreira,
nas ruas São Paulo com Tupis,
pertinho do Cine Jacques e do Ted's,
no centro de Belo Horizonte - 
o mundo aos nossos pés.

Mamãe dizia sobre a nossa amizade:
"Onde uma põe o pé,
a outra põe o nariz!" rsrsrs
Como irmãs siamesas,
como Cosme e Damião,
inseparáveis.
Unidas por uma amizade amorosa,
nada igual -
unidade de almas;
uma pela outra.
Assim, aprendi cedo o amor verdadeiro.
A família dela era minha
e a minha, dela.

Não andávamos sozinhas,
primos de um lado
e a Zaga do outro -
nosso grupo de encontro de jovens
do colégio dela - o Dom Silvério.
Aí trocamos experiências,
afeto e amizades próximas,
que nos marcaram positivamente
para o resto de nossas vidas.

12.3.2016
À minha irmã de alma 
Andréa Labruna Cunha Picou

Ela aos 13, eu aos 14 anos, no sítio de Andréa Mello Marinho, em um desses encontros da Zaga do Dom Silvério

quinta-feira, 12 de março de 2020

Belmiro Teles Cardoso de Carvalho - Meu Irmão

Belmiro carrega o nome do avô paterno.
Um anjo na vida de centenas de pessoas,
exemplo de desprendimento e dedicação.
Ilimitados são a generosidade e o empreendedorismo desse ser humano -
palavra que lhe cabe com perfeição.

Tem até canção em seu nome -, "Belmirense",
composta por Alexandre Salles,
amigo do tempo do Colégio Estadual, em Belo Horizonte.
A canção traz referências importantes da vida dele e das nossas:
fazenda Perobas, do avô Belmiro,
casa construída por escravos, que se queimou;
o rio Indaiá e o Morro da Capelinha,
na terra natal, onde brincou
(ainda mantém a casa dos avós,
na Praça dos Coqueiros);
a esposa Simone e os filhos André e Gabriela;
a fazenda Riacho do Campo, da família materna,
no sertão de Guimarães Rosa,
em algum lugar entre o Paracatu e o Urucuia,
pela qual - entre os da nova geração -,
é o maior responsável em ajudar a manter esse paraíso na terra,
que acolhe e agrega toda a família
e centenas de bons amigos.
Ali plantou pastos, eucaliptos; construiu
a Bel's Beach, Bel's suites, Belvedere, rsrsrs, o pavilhão...

Como escreveu Pinha, nossa irmã:
"Esse coração gigante e terno,
onde há lugar pra todos e pra cada um em particular,
parece infinito na sua capacidade de amar e ajudar
Decidido, dedicado,
mas também bravo quando necessário,
faz as coisas andarem e acontecerem!
Não fosse esse seu jeito,
a Riacho não seria o que é hoje, com certeza!
Que você, irmão amado,
colha os frutos de tudo de bom que tem plantado!"

11.3.2020
Dia de seu aniversário

https://m.youtube.com/watch?v=dDOMuv6MF9Y&feature=share

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Ariel Sheli



Arazinho para o pai,
Yelush para a mãe,
menino especial -
gentil, cuidadoso,
alegre, solidário,
inteligente -
desde sempre ao meu lado,
mão na minha mão,
pertinho do meu coração.
Amigo que todos querem por perto,
agradeço ao Senhor rei do Universo
por ter me dado este presente,
colocado este grande amor
em minha caminhada pela vida.
E desde aqui de Israel,
peço a Ele,
com todo o amor de mãe,
que derrame sobre
Ariel ben Nissim
todas as bênçãos do mundo:
proteção divina, saúde, amor, alegrias, êxitos,
agora e sempre.

Israel 18.2.2020


Com o filho Ariel e a netinha Mischa


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Jerusalém Dourada

Jerusalém dourada,
ירושליים של זהב
Cantada em salmos, versos e prosas
"Se eu esquecer Jerusalém,
esquecer-se-á minha mão direita..."
 "אם אשכחך ירושלים... תשכח ימיני"
Não se lembrar de Jerusalém
é como esquecer a si mesmo.

A tradição judaica estipula que o mais importante no momento em que um casal se propõe a construir um novo lar é se lembrar do lugar-berço de seu povo - Jerusalém, em Sion, região montanhosa por onde a cidade se espalha.
Por isso essa frase é recitada no momento dos votos de todo casamento judaico. Ou seja, nunca se esqueça de onde veio e ore por Jerusalém.
Numa correlação, isso pode ser estendido a qualquer casal ao construir uma nova casa, em relação à sua origem e ancestralidade.

Que 2020 seja de paz - 
desde aqui da cidade dourada / yir zahav

Raquel Teles Yehezkel
Jerusalém 31.12.2019

Jerusalem 31.12.2019 by Raquel Teles Yehezkel 

Jerusalem 31.12.2019 by Raquel Teles Yehezkel 

Jerusalem 31.12.2019 by Raquel Teles Yehezkel 




quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Portuguesit ou Portugalit, em hebraico?

Chegou até mim em 29.1.2015 um documento oficial da Academia de Língua Hebraica, versando sobre o emprego de "portuguesit" ou "portugalit", discussão que julgo muito importante, por isso compartilho com vocês, brasileiros, falantes da vertente brasileira do português em Israel, um artigo em que defendo continuarmos especificando a nossa língua como "portuguesit". E explico por quê.

A recomendação pelo termo "portugalit" para designar a língua que falamos é uma norma da Academia de Língua Hebraica, que, embora esteja baseada em estudos do comportamento da língua, é uma imposição de cima para baixo, da Academia para os falantes, baseada no uso formal da língua hebraica. No entanto, é sabido que nem sempre a recomendação se confirma na realidade em uso.
As normas são a tentativa de uma descrição da língua em uso e não o contrário. Elas são importantes para manter a unidade da língua oficial, documental, formal e a identidade de um país e de um povo. Têm suma importância. Mas a língua usada de forma coloquial e compreendida entre os falantes da mesma língua pode um dia vir ser a normativa por ser a forma dominante, usada pela maioria dos falantes daquela língua. Nesse caso, se a maioria dos falantes de hebraico optarem por falar "portuguesit", com o tempo a Academia vai abranger o termo mais usado e incluí-lo na forma normativa. É assim que funcionam as línguas, elas são vivas e mutantes.
Atualmente, grande parte dos israelenses, talvez a maioria, fala "portuguesit", e todos entendem e está bem assim. Daí a necessidade deste documento que a Academia publicou, com número e tudo mais. Se não estivéssemos na encruzilhada que divide o uso entre o "portuguesit" e o "portugalit" não teriam levantado tal discussão.
Assim sendo, partindo de pressupostos sobre o funcionamento da língua como defendido por Possenti (1996) e Bagno (1999), de que a língua a se tornar normativa é aquela falada pela maioria ou a língua dos interesses e do poder, faço a opção pelo termo "portuguesit", continuando a insistir em seu uso, para que com o tempo ele se firme e a Academia o incorpore. Como falante da vertente brasileira, não tenho interesse de que nossa língua seja literalmente a língua de Portugal = portugalit. Portuguesit também advém de Portugal, mas mantém uma distância maior, dando maior flexibilidade e legitimidade ao português do Brasil de ser como ele é, reforçando as nossas diferenças, mesmo sendo usuários da mesma língua.
Quando digo "portugalit" estou aceitando o português de Portugal como modelo primário. Essa é minha opinião, como amante da língua portuguesa. Nesta perspectiva, nós, brasileiros em Israel, podemos continuar a nomear nossa língua de "portuguesit" e não "portugalit". Com o tempo, a nossa vertente, nosso modo de falar, acabará sendo reconhecido pela Academia: o "portuguesit" do Brasil e não o "portugalit" do Brasil.

Raquel Teles Yehezkel
Texto publicado no FB em 29.1.2015

Citação do site da Academia de Língua Hebraica, acessado em 29.1.2020
על רקע זה התגבשה מסורת ארוכה של מתקני הלשון להמליץ על הצורה פורטוגלי, ועל דרך זו גם מלטי, בורמי, קונגואי, אנגולי ועוד. עם זאת, כאמור, ועדת הדקדוק של האקדמיה החליטה שלא להתערב בשאלת גזירתם של שמות הייחוס משמות של ארצות וערים בעולם. והרי יש בעברית מקרה אחד ותיק של יצירת תואר ייחוס משם של ארץ בתיווך לשון אירופית: איטלקית (מן היוונית – italikos)
Tradução: "Nesse contexto, uma longa tradição de normas linguísticas foi formulada para recomendar a forma em portugalit e, dessa maneira, também malti, birmani, congoí, angolani e outros. 
No entanto, como afirmado, a Comissão de Gramática da Academia decidiu não intervir na questão de derivações de nomes de países e cidades do mundo. Há, em hebraico, um antigo caso de criação de um adjetivo oriundo do nome de um país mediado por uma língua europeia: italikit (do grego - italikos).
Referências:
BAGNO, Marcos: "Preconceito Linguístico - o que é, como se faz". Edições Loyola, São Paulo, 1999.
POSSENTI, Sirio. "Por que (não) ensinar gramática na escola. São Paulo, Ática, 1996.
Site da Academia de Língua Hebraica acessado em 29.01.2020:





segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Entre-culturas: vivendo entre Brasil e Israel


 Conheci Nissim no meu aniversário de 22 anos. Ele também tinha 22. Estávamos na Bolívia, no caminho de Machu Pichu, em janeiro de 1983 - eu indo, ele voltando. Posso dizer que ao encontrá-lo, encontrei também minha outra casa, outra parte da minha vida. Desde então caminhamos juntos, buscando construir pontes entre nossas culturas.

Ele é de Israel, eu, de Dores do Indaiá, no interior de Minas, Brasil. Ao longo do caminho, muitas vezes, as diferenças culturais foram barreiras, outras, pontes. Tínhamos o background comum da geração nascida nos anos 60, recém-globalizada pela música, pela literatura e o cinema. A geração do rock pop e progressivo, do cinema experimento, da liberação sexual, da rebeldia dos filhos da classe média. Eu vinha de Beagá do Cine Pathé e da Sala Humberto Mauro, dos shows no Palácio das Artes, no Francisco Nunes e no DCE, da Fafich da UFMG, das turmas de rua e de colégios, dos grupos de músicos-amigos, da Alquimia e comidas naturais, de famílias do interior de Minas - há gerações conectadas à terra, às águas e ao firmamento, e irmãos proprietários de livrarias. Ele, recém-saído da Tzahal (Forças de Defesa de Israel), quatro anos no Modiyn (Serviço de Inteligência), serviu no Sinai e em Ramat Hasharon, de familias de imigrantes saídas sem nada do Iraque ao final da II Guerra, da primeira geração nascida na nova Terra de Israel, estudou no Netsah LeBanim (sim, chavash kipá / usava solidéu até os 14 anos), na prestigiosa High School Aamal de Petach Tikva e no Joseph College da Universidade de Tel Aviv, frequentou o Cine Paris e a hof (praia) Hatzuk de Tel Aviv, foi corredor de maratona, atravessava correndo os pardesim (pomares) de laranja, que ligavam Petah Tikva até o mar. Entendia - e entende ainda - tudo de música, de cinema, de literatura e esportes. Leu de Tolstoi e Bashevis Singer a Jorge Amado e Eli Amir. Me aplicou em Arik Einstein e na música israelense de todos os tempos e eu o apliquei no melhor da música popular brasileira.

Nessa travessia, nos construímos entre amor, rachaduras e frestas - através de Arik Einstein, Shmulik Kraus, Shalom Hanoch, Shlomo Artzi, Poliker,  Zohar, Ishay Levi, Bery Saharov, Amir Levi, Ehud e Meir Bannay, Caetano, Cazuza, Raul, Almodovar. Entre corridas e caminhadas, sempre lendo antes de dormir, acompanhando seriados e cinema, ouvimos juntos tudo de Dire Straits, Eric Clapton, Neil Young, Peter Green, Leonardo Cohen, Joe Coker, Tom Waits, Rob Robertson, The Band, Bob Dylan. Fundamos juntos a Editora Leitura de Belo Horizonte.

Eu tinha uma atração e simpatia pela história e cultura do país dele, ele, pelo meu. De tudo, talvez o que mais nos tenha conectado desde e sempre tenha sido a forma de viver de nossas famílias. Ambos viemos de casas muito calorosas, com irmãos unidos que se importam muito uns com os outros e pais dedicados à família, tios, primos e sobrinhos muito próximos. Fui abraçada pela família dele e ele se adaptou à minha com facilidade - apesar de manter sempre a reserva intrínseca à sua personalidade. Aos poucos ele se tornou um israelense meio brasileiro, e eu, uma brasileira bem israelense.

Cheguei a Israel ao completar 23 anos, em Pessach (Páscoa judaica), em abril de 1984, no 36* aniversário desse país. Dos costumes religiosos não entendia nada, mas logo me adaptei. Já vinha ligada ao país pela literatura e o cinema, e também pela história que nos unia desde a Inquisição e a formação do Brasil, carregando os sobrenomes Cardoso, Oliveira, Pinto, Campos e Carvalho dos meus avós, cristãos-novos no interior do Brasil. Na terra da minha mãe, em Bom Despacho, diziam que os Cardoso casavam entre si, não se misturavam, casando ela mesma dessa forma, com meu pai, Teles Carvalho, parentes com ancestrais comuns em Luz.

E nessa longa cadeia, nas voltas que a vida dá, abracei o judaísmo e dediquei boa parte da minha vida ao aprendizado e à aproximação dessas duas culturas, que, apesar de tão diferentes, são ricas, informais, criativas, calorosas e múltiplas. No Brasil, tinha que explicar Israel; em Israel, explicar o Brasil. Estudei Letras, História, participei do Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG, fui editora, escrevi e adaptei livros por 15 anos e, depois, diretora do Centro Cultural Brasileiro em Tel Aviv por mais uns tantos. Entre um lugar e o outro, criamos três filhos que se amam, e bem diferentes entre si, Elias /Elyahu, Ariel e Alon: um rabino, um empresário e um artista.

Entre descidas e subidas, reconheço que absorver amplamente língua e cultura implica transformação e dor, pois nunca mais nos encontramos totalmente nem em uma, nem em outra.
Entre-culturas.

Raquel Teles Yehezkel
Setembro de 2019

Israel, Kibutz Hatzor, junho 1984

 Com os filhos em BH e em Jerusalém

com os netos em 2019