Acordei em Israel com imagens de demolição das antigas casinhas da rua Congonhas, vizinhas ao Clube Makenzie, no bairro Santo Antônio, em Belo Horizonte. Numa delas viveu o grande escritor João Guimarães Rosa, vindo com a família de Cordisburgo para estudar na capital. Como pode ser? Local onde na adolescência moravam amigos, onde ficava o memorável Bar do Lulu, que reunia a rapaziada da época, e onde Helvécio Ratton filmou o Menino Maluquinho, de Ziraldo.
Por ali, na Santo Antônio do Monte e depois na São Domingos do Prata morava a vovó Malvina Saliba, avó emprestada de minha maior amiga Andréa L. Cunha, que nos servia houmus com pita feitos por ela, vinda do Líbano; morava também, na Alfredo Albuquerque, nossa amiga comum Beatriz Siqueira. Juntas, após comer pão de queijo assado na hora pela dona Arlete, na Viçosa, nos perdíamos pelas voltas dessas ruas em conversas fiadas, num caminho sem fim. Nessa mesma região, moravam a Devana, na Viçosa, a Dorinha Gouthier e a Cláudia Fenelon na Bahia e Carangola, minhas colegas no Estadual Central. Havia também a dona Irani, meus conterrâneos de Dores do Indaiá e netos da dona Amélia - na Benvinda de Carvalho. Por ali transitou a minha geração tantas vezes, entre o Mackenzie, o Padre Machado, tendo o Dom Silvério de um lado, o Coleginho e a Fafich do outro, o Estadual Central, o Minas e a Savassi - coração pulsante, mais abaixo, tudo à pé, via Carangola, Leopoldina e Viçosa, remetendo sempre, essas casinhas singelas, ao tempo de crianças brincando nas ruas e de cadeiras na calçada.
Crianças e adolescentes já não vão mais à escola nem visitam as casas dos colegas à pé, desconhecendo o território que habitam. O estilo de vida na cidade mudou completamente e continua mudando. Manter casas antigas, em região tão valorizada, muitas vezes é inviável para os proprietários. A prefeitura deveria ter assumido, há muitos anos antes, o projeto e a responsabilidade da revitalização desse conjunto arquitetônico charmoso e mágico. A construtora Canopus, que constrói prédios milionários, responsável pelo novo empreendimento, poderia pelo menos manter parte da casa onde viveu Rosa, na esquina de Congonhas com Leopoldina, no antigo Bar do Lulu, como memória do autor e da cidade, desse modo de vida que se extingue rapidamente por todos os bairros periféricos à avenida do Contorno. Poderia oferecer um presente à nossa cidade...
Texto de Raquel Teles Yehezkel
Em 25.7.2019, a Prefeitura de BH e a construtora Canopus anunciaram que as casas não serão demolidas, mas restauradas e preservadas em projeto de moradia. Aguardemos.
Fonte - Site Mais Minas. Acessado em 24/7/2019
https://maisminas.org/casa-onde-viveu-guimaraes-rosa-e-demolida-em-belo-horizonte/
Acessado em 27.7.2010:
https://blogs.oglobo.globo.com/afonso-borges/post/casa-onde-morou-guimaraes-rosa-em-bh-e-demolida-no-dia-do-escritor.html
Acessado em 27.7.2019:
https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/07/26/interna_gerais,1072518/conheca-projeto-que-deve-devolver-a-bh-casa-de-guimaraes-rosa.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social
quarta-feira, 24 de julho de 2019
quarta-feira, 10 de julho de 2019
As Polacas e Jacob do Bandolim
A foto de um cemitério israelita restaurado em junho de 2019 em Cubatão, Santos - lugar onde aportavam "as polacas" que chegavam ao Brasil cheias de esperança, chamou minha atenção.
"As polacas", foi como ficaram conhecidas as moças judias enviadas para o Brasil, Argentina, Uruguai, com promessas de vida melhor e de casamento na América - termo usado intencionalmente de forma genérica para enganar os incautos. Os traficantes de vidas humanas, que conduziam essa jovens a uma nova vida, tomavam seus passaportes ao aportar no Brasil e as forçavam a trabalhar de prostitutas para pagar as despesas de viagem.
Assim, moças pobres, de aldeias remotas do Leste europeu, que não falavam sequer uma palavra do idioma local, entravam em um círculo de marginalidade social que no início do século XX não as permitia integração. Dessa forma, tornaram-se marginalizadas na sociedade local e na comunidade judaica.
Apesar das adversidades sofridas, souberam se organizar para se proteger; comemoravam as festas judaicas, tinham suas próprias sinagogas, ajudavam uma à outra na criação dos filhos que daí nasceram, e compraram para si terrenos para serem sepultadas conforme os rituais judaicos, já que não lhes era permitido serem enterradas nos cemitérios israelitas da época.
Nos últimos anos, a história das polacas vem sendo resgatada por seus familiares e estudiosos, passando a ser inserida no contexto do tráfico humano e das fugas à perseguição sofrida pelos judeus na Europa Oriental. Essas moças eram de várias partes da Europa Oriental, mas principalmente da Polônia, oriundas de aldeias / shtetls muito pobres, entregues pelas próprias famílias ao shadhan, especialista em arranjar casamentos, na esperança de um bom arranjo e de um futuro mais promissor na América. Assim se generalizou de modo pejorativo o termo "as polacas" para as prostitutas judias no Brasil e no Cone Sul.
Ao fazer referência a elas, não podemos deixar de citar a incrível história de Jacob do Bandolim, considerado um dos maiores compositores de chorinho, narrada de forma emocionante por Nelson Menda em artigo de leitura imperdível, "O Judeu do Bandolim", na Revista do Choro. Jacob do Bandolim era judeu, filho de mãe Polaca e de pai brasileiro. Cresceu no baixo meretrício, no bairro boêmio da Lapa. Se converteu ao catolicismo para se casar na igreja com Otília, uma jovem da classe média de Copacabana. Era pai de Elena e do músico Sérgio Bittencourt, que compôs em sua homenagem "Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim..."
Essas histórias estão amplamente documentadas em cartas que as moças enviavam às suas famílias na Europa, escondendo parte da realidade que viviam; em inquéritos contra a organização criminosa de Zvi Migdal, que as trazia da Europa com esquemas enganosos; e também na literatura brasileira, como em "O ciclo das águas", de Moacyr Scliar e em "Traduzindo Hannah", de Ronaldo Wrobel.
Outras referências:
https://revistadochoro.com/artigos/o-judeu-jacob-do-bandolim/
"As polacas", foi como ficaram conhecidas as moças judias enviadas para o Brasil, Argentina, Uruguai, com promessas de vida melhor e de casamento na América - termo usado intencionalmente de forma genérica para enganar os incautos. Os traficantes de vidas humanas, que conduziam essa jovens a uma nova vida, tomavam seus passaportes ao aportar no Brasil e as forçavam a trabalhar de prostitutas para pagar as despesas de viagem.
Assim, moças pobres, de aldeias remotas do Leste europeu, que não falavam sequer uma palavra do idioma local, entravam em um círculo de marginalidade social que no início do século XX não as permitia integração. Dessa forma, tornaram-se marginalizadas na sociedade local e na comunidade judaica.
Apesar das adversidades sofridas, souberam se organizar para se proteger; comemoravam as festas judaicas, tinham suas próprias sinagogas, ajudavam uma à outra na criação dos filhos que daí nasceram, e compraram para si terrenos para serem sepultadas conforme os rituais judaicos, já que não lhes era permitido serem enterradas nos cemitérios israelitas da época.
Nos últimos anos, a história das polacas vem sendo resgatada por seus familiares e estudiosos, passando a ser inserida no contexto do tráfico humano e das fugas à perseguição sofrida pelos judeus na Europa Oriental. Essas moças eram de várias partes da Europa Oriental, mas principalmente da Polônia, oriundas de aldeias / shtetls muito pobres, entregues pelas próprias famílias ao shadhan, especialista em arranjar casamentos, na esperança de um bom arranjo e de um futuro mais promissor na América. Assim se generalizou de modo pejorativo o termo "as polacas" para as prostitutas judias no Brasil e no Cone Sul.
Ao fazer referência a elas, não podemos deixar de citar a incrível história de Jacob do Bandolim, considerado um dos maiores compositores de chorinho, narrada de forma emocionante por Nelson Menda em artigo de leitura imperdível, "O Judeu do Bandolim", na Revista do Choro. Jacob do Bandolim era judeu, filho de mãe Polaca e de pai brasileiro. Cresceu no baixo meretrício, no bairro boêmio da Lapa. Se converteu ao catolicismo para se casar na igreja com Otília, uma jovem da classe média de Copacabana. Era pai de Elena e do músico Sérgio Bittencourt, que compôs em sua homenagem "Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim..."
Essas histórias estão amplamente documentadas em cartas que as moças enviavam às suas famílias na Europa, escondendo parte da realidade que viviam; em inquéritos contra a organização criminosa de Zvi Migdal, que as trazia da Europa com esquemas enganosos; e também na literatura brasileira, como em "O ciclo das águas", de Moacyr Scliar e em "Traduzindo Hannah", de Ronaldo Wrobel.
![]() |
Foto de Rogério Soares / Jornal A Tribuna de Santos |
https://revistadochoro.com/artigos/o-judeu-jacob-do-bandolim/
https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2019/06/30/cemiterio-israelita-e-reaberto-ao-publico-em-cubatao.ghtml
Kushnir, Beatriz. "Bailes de máscaras: mulheres judias e prostituição- As Polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Largman, Esther Regina. Jovens Polacas. Rio de Janeiro: Record, 1992.
Filme: Jovens Polacas, de Alex Levy-Heller, baseado no livro de Esther Regina Largman.
https://revistadochoro.com/artigos/o-judeu-jacob-do-bandolim/
https://revistadochoro.com/artigos/o-judeu-jacob-do-bandolim/
quinta-feira, 4 de julho de 2019
A falta do que não vivi... - no shteitel de Malamud
Estranho que possamos sentir falta do que não vivemos...
Seguimos novos caminhos, deixando para trás a casa de nossos pais, como se faz desde o tempo de Avraham... E, através das palavras de Malamud, vejo Iákov deixar sua casa sem olhar para trás. Volto num tempo nunca vivido e visito um shteitel, em algum lugar remoto, perto de Kiev, ainda antes da Revolução Russa de 1917. Enxergo, então, como se perderam no tempo essas comunidades, e com elas um modo de vida que se extinguiu por completo em toda a Europa Oriental. Delas quase nada restaram - apenas alguns cemitérios e lápides...
Distantes no tempo, ficam para nós como um sonho, uma névoa - um modo de vida só revelado em fragmentos, como esses que cito a seguir, descritos tão bem por Bernad Malamud no livro "O Faz-tudo". Também o fez Bahsevis Singer em outros. Permanecem, ainda, em lindas e nostálgicas pinturas como em Marc Chagall, em registros literários, em uns poucos flashes de filmes, em memórias passadas de pais para filhos. Um modo de viver devastado pelo preconceito, pela inveja, pela maldade humana, varrido do mapa na II Guerra. Não há exercício racional que se faça entender. Não há capará, não há mechilá para a vida dos que se foram...
E assim, seguimos a vida, tentando sempre criar novos shteitels...
Trechos de "O Faz-tudo":
"- O que há no mundo lá fora - disse Shmuel -, há também no shteitel - há apenas gente com seus problemas, suas aflições, suas circunstâncias. Mas aqui, pelo menos, Deus está conosco.
- Ele está conosco até a hora em que os cossacos chegarem galopando. Nessa hora ele já estará em outro lugar." (...)
"- Você ficou diferente de um ano para cá, Iákov. Que desejos tão importantes são esses?"
(Perguntou o sogro, Shmuel, ao genro Iákov - um trabalhador faz-tudo, recentemente abandonado pela esposa infértil, que fugira com um outro.)
"- São desejos que não dormem nem me deixam dormir para lhes fazer companhia. Eu já lhe falei dos meus desejos: um estômago cheio de vez em quando. Um trabalho que me pague me rublos e não com pratos de macarrão. Até mesmo um pouco de instrução, se possível, e não estou falando dessas aulas de Torá que dão aos trabalhadores tarde da noite. Já tive minha cota dessas aulas. O que quero saber é o que está acontecendo no mundo.
- Está tudo na Torá e não se termina nunca de estudá-la. Fique longe dos maus livros, Iákov, dos livros impuros.
- Não existem livros maus. Mau é ter medo deles." (...)
- Iákov, se você quer mesmo ir para terras estrangeiras, apesar dos turcos, por que você não vai para a Palestina, onde os judeus podem ver árvores e montanhas judaicas respirar o ar judaico?" (...)
"- Agora vou tentar Kiev. Se puder levar uma vida decente por lá, é o que farei. Se não, farei sacrifícios, economizarei o que puder e parto para Amsterdã, onde pegarei um navio para a América. Em resumo, o que possuo é pouco, mas tenho planos."
(...) "O faz-tudo não olhou para trás. A carroça foi seguindo por uma estradinha cheia de curvas entre campos arados de terra escura (...) Mais lentamente, a carroça subiu a estradinha de pedras do cemitério com seus salgueiros amarelados entre os túmulos. Passaram por uma colina onde os túmulos eram assinalados por lápides baixas. Era lá que os pais de Iákov, um homem e uma mulher de pouco mais de vinte anos, estavam enterrados. (...) O passado era uma ferida aberta." (...)
"Um shnorrer em andrajos gritou para o faz-tudo de junto de uma lápide prestes a cair.
- Ei, Iákov, hoje é sexta-feira. Que tal uma moeda de dois copeques para que seu sábado seja abençoado? A caridade salva a morte.
- A morte é a última das minhas preocupações." (...)
"Deixaram para trás a colina do cemitério descendo por uma estradinha tortuosa. (...) atravessou a ponte de madeira que levava à parte mais populosa da cidadezinha. Passaram pelo casebre de Shmuel, mas nenhum dos dois olhou em sua direção. Uma casa de banhos de paredes escurecidas e janelas fechadas por tábuas ficava junto a um riacho e o faz-tudo foi acometido de um súbito desejo de um banho. (...) Água e sabão são coisas abençoadas por Deus, costumava dizer Raizl. Dentro de poucas horas a casa de banhos, soltando vapor pelas fendas, estaria apinhada de judeus a se lavarem para a noite de sexta-feira.
Seguiram sacolejantes por uma rua esburacada e poeirenta com casinhas de teto de palha de um lado e, do outro, um campo aberto onde o mato crescia. Uma judia usando uma grande peruca, sentada no degrau à frente de sua casa, depenava uma galinha de pescoço ensanguentado que prendia entre os joelhos (...). Uma poça de sangue na vala da rua era testemuna do ritual com que fora morta a galinha. (...) As portas de algumas das casas soltavam-se dos alisares e, onde havia degraus, estes estavam quebrados. As cercas estavam arrebentadas, algumas prestes a cair, mas ninguém parecia se importar com toda aquela decadência que deixava irritado o homem que consertava as coisas e gostava de vê-las em ordem e funcionando.
Naquela noite, velas brancas seriam acesas em todas as janelas, menos na sua.
O cavalo seguiu em ziguezague em direção ao mercado, e a qualidade das casas por onde passavam foi melhorando. Algumas eram grandes e bonitas e seus jardins ainda tinham flores de verão.
- Que esses ricos nojentos fiquem por aí com suas casas - murmurou o faz-tudo.
Shmuel não fez comentários. Sua mente, como ele já disse várias vezes, havia esgotado aquele assunto. Ele não invejava os ricos e queria apenas compartilhar um pouquinho da riqueza deles - o suficiente para manter-se vivo, dinheiro ganho com seu trabalho.
O mercado, uma praça aberta com prédios de madeira em dois de seus lados, alguns com lojas no segundo pavimento, estava repleto de camponeses com suas carroçaa cheias de grãos, verduras, madeira, couro e sabe-se lá o que mais. Ao redor das barracas e das lojas, uma freguesia constituída principalmente de mulheres fazia as compras para o sábado. Embora o mercado fosse o lugar onde se costumava ficar à procura de trabalho, o faz-tudo não acenou para pessoa alguma e ninguém acenou para ele.
Parto daqui sem saudades, pensou. Já deveria ter partido há anos."
In: MALAMUD, Bernard. O faz-tudo. Rio de Janeiro: Editora Record. 2006. p.25-30.
Seguimos novos caminhos, deixando para trás a casa de nossos pais, como se faz desde o tempo de Avraham... E, através das palavras de Malamud, vejo Iákov deixar sua casa sem olhar para trás. Volto num tempo nunca vivido e visito um shteitel, em algum lugar remoto, perto de Kiev, ainda antes da Revolução Russa de 1917. Enxergo, então, como se perderam no tempo essas comunidades, e com elas um modo de vida que se extinguiu por completo em toda a Europa Oriental. Delas quase nada restaram - apenas alguns cemitérios e lápides...
Distantes no tempo, ficam para nós como um sonho, uma névoa - um modo de vida só revelado em fragmentos, como esses que cito a seguir, descritos tão bem por Bernad Malamud no livro "O Faz-tudo". Também o fez Bahsevis Singer em outros. Permanecem, ainda, em lindas e nostálgicas pinturas como em Marc Chagall, em registros literários, em uns poucos flashes de filmes, em memórias passadas de pais para filhos. Um modo de viver devastado pelo preconceito, pela inveja, pela maldade humana, varrido do mapa na II Guerra. Não há exercício racional que se faça entender. Não há capará, não há mechilá para a vida dos que se foram...
E assim, seguimos a vida, tentando sempre criar novos shteitels...
Trechos de "O Faz-tudo":
"- O que há no mundo lá fora - disse Shmuel -, há também no shteitel - há apenas gente com seus problemas, suas aflições, suas circunstâncias. Mas aqui, pelo menos, Deus está conosco.
- Ele está conosco até a hora em que os cossacos chegarem galopando. Nessa hora ele já estará em outro lugar." (...)
"- Você ficou diferente de um ano para cá, Iákov. Que desejos tão importantes são esses?"
(Perguntou o sogro, Shmuel, ao genro Iákov - um trabalhador faz-tudo, recentemente abandonado pela esposa infértil, que fugira com um outro.)
"- São desejos que não dormem nem me deixam dormir para lhes fazer companhia. Eu já lhe falei dos meus desejos: um estômago cheio de vez em quando. Um trabalho que me pague me rublos e não com pratos de macarrão. Até mesmo um pouco de instrução, se possível, e não estou falando dessas aulas de Torá que dão aos trabalhadores tarde da noite. Já tive minha cota dessas aulas. O que quero saber é o que está acontecendo no mundo.
- Está tudo na Torá e não se termina nunca de estudá-la. Fique longe dos maus livros, Iákov, dos livros impuros.
- Não existem livros maus. Mau é ter medo deles." (...)
- Iákov, se você quer mesmo ir para terras estrangeiras, apesar dos turcos, por que você não vai para a Palestina, onde os judeus podem ver árvores e montanhas judaicas respirar o ar judaico?" (...)
"- Agora vou tentar Kiev. Se puder levar uma vida decente por lá, é o que farei. Se não, farei sacrifícios, economizarei o que puder e parto para Amsterdã, onde pegarei um navio para a América. Em resumo, o que possuo é pouco, mas tenho planos."
(...) "O faz-tudo não olhou para trás. A carroça foi seguindo por uma estradinha cheia de curvas entre campos arados de terra escura (...) Mais lentamente, a carroça subiu a estradinha de pedras do cemitério com seus salgueiros amarelados entre os túmulos. Passaram por uma colina onde os túmulos eram assinalados por lápides baixas. Era lá que os pais de Iákov, um homem e uma mulher de pouco mais de vinte anos, estavam enterrados. (...) O passado era uma ferida aberta." (...)
"Um shnorrer em andrajos gritou para o faz-tudo de junto de uma lápide prestes a cair.
- Ei, Iákov, hoje é sexta-feira. Que tal uma moeda de dois copeques para que seu sábado seja abençoado? A caridade salva a morte.
- A morte é a última das minhas preocupações." (...)
"Deixaram para trás a colina do cemitério descendo por uma estradinha tortuosa. (...) atravessou a ponte de madeira que levava à parte mais populosa da cidadezinha. Passaram pelo casebre de Shmuel, mas nenhum dos dois olhou em sua direção. Uma casa de banhos de paredes escurecidas e janelas fechadas por tábuas ficava junto a um riacho e o faz-tudo foi acometido de um súbito desejo de um banho. (...) Água e sabão são coisas abençoadas por Deus, costumava dizer Raizl. Dentro de poucas horas a casa de banhos, soltando vapor pelas fendas, estaria apinhada de judeus a se lavarem para a noite de sexta-feira.
Seguiram sacolejantes por uma rua esburacada e poeirenta com casinhas de teto de palha de um lado e, do outro, um campo aberto onde o mato crescia. Uma judia usando uma grande peruca, sentada no degrau à frente de sua casa, depenava uma galinha de pescoço ensanguentado que prendia entre os joelhos (...). Uma poça de sangue na vala da rua era testemuna do ritual com que fora morta a galinha. (...) As portas de algumas das casas soltavam-se dos alisares e, onde havia degraus, estes estavam quebrados. As cercas estavam arrebentadas, algumas prestes a cair, mas ninguém parecia se importar com toda aquela decadência que deixava irritado o homem que consertava as coisas e gostava de vê-las em ordem e funcionando.
Naquela noite, velas brancas seriam acesas em todas as janelas, menos na sua.
O cavalo seguiu em ziguezague em direção ao mercado, e a qualidade das casas por onde passavam foi melhorando. Algumas eram grandes e bonitas e seus jardins ainda tinham flores de verão.
- Que esses ricos nojentos fiquem por aí com suas casas - murmurou o faz-tudo.
Shmuel não fez comentários. Sua mente, como ele já disse várias vezes, havia esgotado aquele assunto. Ele não invejava os ricos e queria apenas compartilhar um pouquinho da riqueza deles - o suficiente para manter-se vivo, dinheiro ganho com seu trabalho.
O mercado, uma praça aberta com prédios de madeira em dois de seus lados, alguns com lojas no segundo pavimento, estava repleto de camponeses com suas carroçaa cheias de grãos, verduras, madeira, couro e sabe-se lá o que mais. Ao redor das barracas e das lojas, uma freguesia constituída principalmente de mulheres fazia as compras para o sábado. Embora o mercado fosse o lugar onde se costumava ficar à procura de trabalho, o faz-tudo não acenou para pessoa alguma e ninguém acenou para ele.
Parto daqui sem saudades, pensou. Já deveria ter partido há anos."
In: MALAMUD, Bernard. O faz-tudo. Rio de Janeiro: Editora Record. 2006. p.25-30.
terça-feira, 2 de julho de 2019
Milton Nascimento e Clube da Esquina em Tel Aviv
E a lenda subiu ao palco
andando devagarzinho, em passos miudinhos.
Como peroba rosa que envelhece forte,
como um bom vinho que encorpa com o tempo,
Milton Nascimento tomou conta do palco e comandou o
show.
Plateia como essa não se via por aqui há muitos
anos.
Misturava-se à surpresa daqueles que não conheciam
muito dessa música,
a saudade de um tempo prestes a seu fim
canções que marcaram gerações como a minha,
à realidade que aquele compositor-gigante,
agora comovente-senhorzinho com coração de criança
vivaz,
enfrentara longa vida, muitas perdas, muita
estrada,
problemas de saúde, para estar aqui e agora.
E eis que ali estava, sem medo, frente à plateia
(de óculos escuros - tímido e discreto),
emocionado, delicado, perfeito,
acompanhado por uma banda de primeira linha,
que lhe dava suporte e cobria pequenas falhas,
o que tornava as emoções únicas e mais verdadeiras.
Entre declarações de amor gritadas ao ar pelas fãs,
entre um bis e outro bis,
artista, músicos e plateia
se apresentavam, se amavam, se emocionavam,
pois "sonhos não envelhecem" –
reforçou o autor da célebre
Canção que na América se ouvia.
Dedicou música à mãe,
àqueles que o receberam no aeroporto,
se dirigiu a plateia várias vezes.
Ninguém queria ir embora, ou deixá-lo ir...
Privilégio vivenciar essa noite,
compartilhando momentos tão especiais com amigos.
Noite de astral irrepetível,
memorável
para quem esteve nesse 30 de junho de 2019
no Eichal Hatarbut de Tel Aviv.
Foi assim...
Parabéns para o Daniel Ring e o Andre Golovaty que produziram o show!"Num domingo qualquer, qualquer hora,
Qualquer dia a gente se vê.
Sei que nada será como antes, amanhã...
Que notícias me dão dos amigos,
Que notícias me dão de você...
Alvoroço em meu coração,
Amanhã e depois de amanhã,
Resistindo na boca da noite um gosto 'do show'..."
Até uma outra, amigo, conterrâneo, com quem dividi lugares e amigos comuns - e grande parte desse meu viver...
Raquel Teles Yehezkel
Texto publicado no Facebook em 1.7.2019
As duas primeiras fotos são de Alon Yehezkel. As outras são de Tamar Matsafi, com exceção da foto dos produtores (Daniel e André), de propriedade da Octopulse.
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